A centralização provocada pela concentração é o factor que tem levado ao esquecimento das periferias, sejam as das cidades, as dos países ou as do continente.
O voto ao esquecimento a que condenaram os bairros dormitórios de Lisboa a Paris ou de Bruxelas a Londres, não é mais que um reflexo do que também foi feito a nível nacional, em relação à chamada província ou interior, áreas crescentemente votadas ao abandono e que gradualmente foram perdendo direitos e acesso a serviços e bens públicos, apesar de pagarem tantos impostos (ou até mais, se pensarmos numa lógica de preço/qualidade) como os restantes, ainda que perdendo sucessivamente o acesso à melhor educação, saúde, transportes ou justiça – taxation without trade-off.
Este mesmo modelo de esquecimento, exportado ou importado do local para o nacional, existe também a nível continental, onde o centro político, financeiro e empresarial – cada vez mais mesclado entre si – votou ao esquecimento de forma gradual os países periféricos, que assistem hoje à mesma deterioração de acesso e direitos a que as suas capitais condenaram o seu interior e as suas maiores cidades condenaram aos seus subúrbios.
Votados ao esquecimento, cada vez mais abandonados e ostracizados, sem o mesmo acesso, sem as mesmas possibilidades, sem os mesmos serviços, serão estas franjas que tenderão elas próprias a votar cada vez mais naqueles que são igualmente vistos como ostracizados da política. Os extremos, os radicais, os autoritários, os antidemocráticos. Aqueles que, esgotadas todas as soluções pacíficas, políticas, democráticas, centristas mas sempre autistas face aos esquecidos e marginalizados, sem que os seus problemas tenham sido minorados, antes sempre agravados, pelo menos aparentam ser qualquer coisa diferente.
Negligenciados vezes sem conta pelas soluções que a Democracia lhes promete mas nunca cumpre, entendendo cada vez melhor que a via democrática foi capturada por um centro dominado pela mescla político-financeira-empresarial, que vai concentrando os benefícios em alguns e a maioria dos custos nas periferias – sejam os subúrbios, as províncias ou os países periféricos -, aumentando e perpetuando as desigualdades, terão cada vez mais propensão e vontade de reagir. E se as soluções vendidas como democráticas são, para eles, tudo menos isso, já que representam uma maioria de interesses cada vez mais reduzida, ainda que dominante pela sua força e influência, sobram as restantes.
E nem a mediatização constante, exasperante, sufocante e alarmista de que fugir do statu quo político representa entrar no caminho para o abismo os afastará do mesmo. Pela simples razão de que estes esquecidos, marginalizados, depauperados e desrespeitados já se sentem a viver no abismo. E se ninguém os tira de lá, a única forma de se defenderem é puxar todos para o mesmo destino. Quem já vive no abismo não tem medo do abismo.
Porque mais do que perceber quem vota no ‘Brexit’, nos extremos ou no populismo por convicção ideológica, urge perceber quem dá vitórias a estas mesmas soluções – porque os que votam por convicção não são os que dão as vitórias a estas soluções. Não. Quem dá as vitórias são estas franjas populacionais esquecidas, ignoradas, desperdiçadas. Que não votam por convicção, votam por desespero, porque ninguém as ouve há demasiado tempo. Por alguma razão a expressividade eleitoral destes fenómenos está a crescer ao mesmo ritmo das desigualdades – de rendimentos, de acesso a educação, justiça ou saúde -, sendo que o autismo é de tal grau que nem assim se combatem as desigualdades.
Pode-se atribuir o crescendo eleitoral de soluções antidemocráticas ou antieuropeístas a uma enorme divisão que existe nos países, entre novos e velhos, entre ‘citadinos’ e ‘provincianos’, entre letrados e não letrados, e clamar que os segundos estão a complicar a vida dos primeiros. Pode-se acusar os mais velhos, os mais provincianos, os menos letrados de estarem a levar todos ao abismo. E assim passar as culpas e responsabilidades.
Mas deve-se sobretudo questionar o porquê de existirem tantos ‘mais velhos’, ‘mais provincianos’ e ‘menos letrados’ a não se sentir representados, respeitados ou votados ao esquecimento. E também o porquê de se juntarem a estes cada vez ‘mais novos’, ‘mais citadinos’ e ‘mais letrados’.
Porque isto aconteceu à medida que a democracia foi sendo ela própria votada ao esquecimento, através da aprovação de novas camadas kafkianas e pseudodemocráticas de instituições que, gradualmente, extraíram o poder ao demos – basta ver que a maioria destas camadas surgiu mesmo depois de chumbadas em referendos populares -, concentrando-o a numa elite sem cara, não eleita, autoritária e centralizadora que, de forma cada vez mais fácil, vai concentrando poder, riqueza e benefícios.
A única forma de combater os extremismos, populismos e o risco do dito abismo passa pelo combate às desigualdades. Só e apenas. Lembrarem-se dos esquecidos. Puxar pelos marginalizados. Nivelar o acesso e as possibilidades de singrar. Devolver o poder aos cidadãos.
Vivêssemos numa democracia real, este ajustamento ocorreria naturalmente. Jamais teríamos chegado ao ponto em que estamos. Porque as soluções que teríamos diante de nós seriam realmente democráticas e plurais – e logo equilibrar-se-iam com a alternância no poder. Ter uma esquerda e uma direita que não se distinguem não é pluralismo. É unilateralismo. Que é o oposto da teoria democrática.
Mas o ajustamento acontecerá, acontece sempre. Só varia o grau de dores porque passamos durante o mesmo.