Partilho um editorial do jornal “A Capital” de 21 de setembro de 1914 com o qual me cruzei por acaso numa das habituais incursões por publicações antigas.
Apesar de ter mais de um século, e com ligeiras adaptações, este parece-me ainda hoje um texto bastante atual, isto apesar de volvidos 102 anos o público seja hoje ameaçado pelo excesso e não pela escassez informativa. Mas mesmo com esta alteração hiperestrutural [com a qual não estamos a saber lidar], o teor e o foco do editorial, sobre a mercantilização, as pressões de vária ordem – “tirannia” ou “mercantilismo” – e a relação que se deve estabelecer entre um meio e o seu público, relação sem a qual não é possível – ou lógico – existir, ainda está na ordem do dia.
Porque os dogmas e o monopólio da opinião são sempre ambições de muitos, também um jornal não deve deixar de resistir, ceder e tampouco deve tentar “adaptar-se” ou “acomodar” as pressões quando esses movimentos implicam perder o seu objetivo essencial. Porque o público de um jornal será fiel tanto quanto o jornal for fiel à sua palavra e a sobrevivência de um meio só virá desta fidelidade e nunca de outras.
Além da “original”, encontram o editorial transcrito de seguida.
“A Capital”, edição de 21 de Setembro de 1914:
Transcrição [negritos são meus]:
O jornal e o público
Fazer um jornal não é simplesmente fazer uma empresa, ou transformal-o, um dia, simplesmente n’uma empresa. Não é para isso que se faz um jornal. A sua funcção é essencialmente diversa. Um jornal é o orgão de um pensamento que procura tornar-se o interprete da opinião publica. N’estas palavras se sinthetisam as razões do seu inicio e as aspirações dos seus fins.
Para que esse jornal se torna realmente um orgão de opinião publica é necessario um largo esforço. O exito d’essa tentativa depende da sua colaboração com o espirito publico, e essa collaboração não lhe é dado alcançal-a, com rarissimas excepções, de uma maneira quase instantanea. E´ preciso que o espirito publico em primeiro logar se penetre das verdades que elle lhe expõe, e se capacite da sinceridade que as inspira. Os jornaes são postos á prova na consciencia popular. Quando essa consciencia reconhece que está em presença de um esforço honesto, de uma intenção nobre e de um pensamento seguro, é que se constata a existencia de um publico que mantem esse jornal, que o ama, que confia n’elle, que o adopta, e lhe chama, com orgulho e carinho, “o meu jornal”. Na realidade é d’elle. É elle que o faz, é elle que o inspira, é elle que o sustenta. E´ filho da sua alma e pertence-lhe o seu coração.
Atacar esse jornal, querer esmagal-o, pelas oppressões do mando ou pela prepotencia do oiro, é atacar esse publico, aggredil-o no que elle tem de mais caro. E´ atacal-o, e é ao mesmo tempo injurial-o. A prepotencia demonstra-se no facto de o querer obrigar a abandonar esse jornal, que só procurou corresponder á sua confiança e ao seu auxílio; a injuria consiste em suppôr esse publico capaz de uma injustiça, fascinado por um poderio que se põe ao serviço de uma má acção. Não admira, portanto, que esse publico se sinta attingido; e, sem necessidade de appello, porque ninguem tem necessidade de estimular os sentimentos de justiça que tem a certeza de existirem invulneraveis no coração do povo, esse povo reage, porque foi offendido no seu caracter e na sua vontade.
Quando estes factos surgem a serenidade e a firmeza são as armas mais poderosas d’um jornal e do publico. O jornal que se sente bem com a sua consciencia nada teme. Se mostrasse receio, duvidaria do publico, e não tem direito para isso. O jornal fica no seu posto, arrostando todas as perseguições, todas as pressões, todas as manobras inqualificáveis com que se pretende estrangular n’elle uma expressão da opinião publica, quer esse estrangulamento derive d’um proposito de tirannia, quer se origine n’um proposito de mercantilismo. O jornal fica no seu posto, porque não é esse só o seu direito, mas sobretudo o seu dever. Disse um grande pamphletario francez, Paul-Louis Courier, que a expressão do pensamento não é só um direito: é um dever. Póde-se renunciar a um direito; ninguém se pode eximir a um dever. Se o pensamento que inspira uma determinada missão é um pensamento que se julga util, honesto, generoso, benefico para a collectividade social, renunciar a exprimir esse pensamento, emquanto a bocca não é amordaçada, a penna partida ou a vida extincta, é uma capitulação vergonhosa que a consciencia propria estigmatisa sem appellação nem aggravo.
O jornal que de tal forma se rendesse praticaria uma defecção em pleno campo de batalha. O publico que o deixasse morrer praticaria um erro, que um dia reconheceria, quando só se visse á mercê de especuladores ou mistificadores da opinião.
Felizmente que essa contingencia já não é possível. Uma obra de civilisação, que por étapes, cada vez mais largas, tem avançado durante os seculos, creou uma consciencia civica e moral nos povos que já não se encontram na situação de não saber distinguir entre o que é uma verdade pura ou o que não reveste mais do que as apparencias illusorias da verdade. A falsificação dos sentimentos e das idéas já hoje não é possível, porque o publico sabe separar o trigo do joio e fazer aquella justiça recta e segura que é o supremo apanagio do seu espirito. A dignidade, a coherencia, o desinteresse, a manifesta anciedade de progresso, o culto da liberdade e a idéa persistente da melhoria social, em todos os seus aspectos, são as pedras do toque em que se avalia a actuação dos homens que se propõem colaborar com a alma dos povos nas grandes obras do Futuro, e não simplesmente fazer um negocio rendoso, uma especulação arrojada, ou alimentar o sonho, digno do imperialismo germanico, de crear o monopolio da opiniao, o que equivaleria ao restabelecimento dos dogmas.