Primeiro, a execução orçamental começa a correr mal. As ameaças adensam–se, as previsões empoladas de receitas começam a revelar a sua fragilidade e as previsões de despesas, subavaliadas, começam a mostrar que o Pai Natal não existe – como se não o soubéssemos já.Perante o óbvio, o governo nega. Está tudo bem. Ainda é muito cedo. Está tudo dentro do previsto. Aqui os alertas começam a emergir.
Primeiro análises independentes, depois agências de rating, artigos de opinião, avisos dos históricos do partido do governo e por fim até da oposição. Está tudo bem. Ainda é muito cedo. Está tudo dentro do previsto, repete o governo.
Até que as agências de rating se fartam e, olhando para a quantidade de lixo à volta do Orçamento, começam a alertar para o risco de baixar o rating do país.Se os riscos são cada vez mais e todos fingem que nada se passa – enquanto avançam com um orçamento rectificativo apresentado como se fosse a coisa mais normal do mundo -, então o resultado é um rating menos simpático. É que afinal, em pouco mais de três meses, o governo conseguiu criar uma derrapagem de pelo menos 4 mil milhões de euros nas contas públicas, provocada por factores previsíveis como o impacto das pensões dos bancários, o aumento das despesas sociais, a quebra da receita fiscal, o fundo de resgate, as dívidas dos hospitais, as portagens, as empresas públicas que ainda não contam para o OE…
Mas aqui entra o plot twist que qualquer boa série deve ter: o governo encontra o bode expiatório perfeito, avança com mais medidas e impinge-nos que a culpa é dos factores imponderáveis, das ameaças das agências de rating e até dos portugueses, se for preciso – porque a lengalenga de aumentar a produtividade serve apenas para nos fazer sentir culpados – isentando-se de culpas pelas previsões erradas em que decidiu basear o Orçamento do Estado. De um dia para o outro, o que era “impensável” torna-se realidade e lá surgirá nova sequência de medidas contra os contribuintes, justificadas pelo governo com expressões como “as agências de rating e tal…; o agravamento inesperado da situação e tal…”, que assim se transformam nas únicas razões para todos os males.
E quanto à previsão do governo de ter um aumento de receitas fiscais num ano de recessão profunda em Portugal? Isso não tem culpa nenhuma. E a previsão de gastar menos em prestações sociais no ano de maior desemprego de sempre? Também não. E a decisão de aumentar o IVA na restauração, potenciando o desemprego? E as previsões optimistas para as portagens? E a dívida pública que o OE dizia que ia ser de 101% do PIB em Dezembro mas que já vai em 107%? E o impacto na fluidez da economia provocado pela pressa de aumentar tudo o que são impostos, tornando impossível consumir gasolina, luz ou gás naturalmente? E a pressa de avançar com aumentos loucos nos transportes? Ou a pressa de cortar subsídios e salários a trabalhadores e pensionistas? Não, nenhum destes factores tem a culpa.
A culpa é “deles”. Das agências de rating que apontam o óbvio; da conjuntura económica que se agravou “inesperadamente” apesar dos inúmeros alertas lançados nos últimos meses; e dos portugueses, esses malandros, que não são produtivos ou estão desempregados. Porque quem nos governa nunca se engana. Os outros todos é que não sabem marchar.
in: Jornal i, 29 Março 2012