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“O duplo crime de hoje”. A mulher de vários amantes, um marido ‘stoico’ e ‘philosofo’ e… as crianças

No Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, uma história de assassinosuicídio que nos chega desde 1910. “Suicidio heroico” titulava então o jornal.

duplo crime

Fonte: A Capital, julho 1910

 

 

Uma mulher degolada; Um suicidio heroico

Na fabrica de algodões de Xabregas, um machinista assassina a amante e em seguida faz-se triturar pela engrenagem d’um volante

Esta tarde, pouco depois das 2 horas, deu-se uma tragedia sangrenta na fabrica de Xabregas pertencente á Companhia Fabril de e Algodões, que lançou verdadeiro alarme não só no pessoal da fabrica como na população operaria da visinhança. Trata-se d’um assassinio e d’um suicidio, mas ambos revestem circumstancias extraordinarias e sobre as causas d’esse duplo crime paira uma sombra de mysterio que o torna ainda mais commovedor. Pormenorisemos:

Na fabrica trabalhava ha muitos annos como machinista chefe do pessoal do fogo, Carlos Luiz Duarte, de 44 annos, residente na rua do Valle de Santo Antonio, 65, 3º, casado com Maria Gertrudes Duarte, uma mulher que serve a dias em diversas casas da capital. Na mesma fabrica ha outro operario, um dobrador, de nome António Gomes, rapaz ainda novo, que mora na rua Bartholomeu da Costa, nº 31, 2ºD. Este operario casou ha 9 annos com uma sua camarada de trabalho, Julia de Almeida Gomes, filha de José d’Almeida e Amelia Guedes, rapariga de 27 anos, que na fabrica exercia a profissão de tecedeira.

O namoro d’essas duas creaturas iniciou-se naturalmente, durante as suas ocupações diarias. E, depois de casados, continuaram a trabalhar na mesma fabrica, parecendo, no primeiro anno de vida conjugal que eram muito felizes e bebiam os ares um pelo outro. Essa aparencia de felicidade, porém, durou pouco. Ao cabo de tres annos, o Antonio Gomes, obtida a certeza de que a mulher o atraiçoava com outros dos seus companheiros, abandonou-a e ella foi viver para a rua do Sol á Graça, continuando, no entanto, a exercer na mesma fabrica a sua antiga profissão.

UM MARIDO STOICO

Decorridas algumas semanas, a Julia Gomes, cedendo ás propostas do machinista Carlos Duarte, passou a ser a amante official d’este operario, com grande escandalo do pessoal da fabrica que sabia perfeitamente que o machinista era casado e com filhos e porque os dois, elle e a Julia, não occultavam de ninguem a sua ligação adulteri[s]ta. Comiam juntos dentro do edificio da fabrica e, um anno depois do inicio dos seus amores, a Julia, que do marido não tivera filhos, teve um do machinista, a que pôz o nome de Raul. É uma creança de 4 annos de edade, que vive em casa da avó, na rua Machado da Costa.

Hoje de tarde, á hora do jantar, o Carlos e a Julia largaram o trabalho e vieram para o pateo da fabrica, um recinto vasto e arejadissimo, comer alguma coisa. Ninguem notou que entre os dois se tivesse dado qualquer desaguisado. A refeição decorreu tranquilamente, e os dois amantes conversaram muito á boa paz. A pequena distancia, o marido atraiçoado, o Antonio Gomes, encarava essa scena com a maior philosophia.

Ás 2 horas logo que a sineta tocou para o trabalho, a Julia foi a officina da tecelagem, pendurou o lenço da cabeça n’um gancho e o Duarte, entrando na casa da machina, poz o enorme volante em movimento. Em seguida veiu ao corredor que estabelece communicação entre essas duas officinas e disse qualquer cousa á Julia que os operarios não comprehenderam. A tecedeira esboçou um gesto indifferente e acompanhou-o a um esconço perto da casa da machina, onde o Duarte nas horas vagas se estendia a ler o jornal ou a dormitar.

Teria o machinista exprobado á amante o seu procedimento, visto que ella, desde que se separara do marido, nunca mais deixara de commetter infidelidades. Talvez. Mas a verdade é que essa censura e a replica da tecedeira foram formuladas em tom tão baixo e tão secreto que a ninguem, repetimos, ocorreu a ideia de que os dois estavam zangados.

FARRAPOS HUMANOS

O que se sabe de positivo é que os dois amantes se demoraram alguns minutos no tal esconço a que já nos referimos e que o Duarte, sahindo d’alli, se encaminhou rapidamente para o volante da machina com que trabalhava e, sem a menor hesitação, atirou-se de cabeça para o fundo do porão. Os fogueiros, que presencearam attonitos o acto tresloucado, pararam immediatamente o motor, mas já era tarde. A engrenagem do volante colhendo o machinista, triturara-lhe a cabeça e reduzira-o a uma massa esfarrapada e sangrenta… No fundo do porão, só restavam cousas informes, pedaços de craneo e retahos de carne, amontoados, amalgamados com um sangue escuro que o carlos da officina coalhara em breves instantes.

Vendo que por este lado nada mais havia a fazer, os fogueiros, dando o signal de alarme para que cessasse o trabalho em toda a fabrica, dirigiram-se para o esconço e ahi depararam com o cadaver da tecedeira, tambem mergulhado em muito sangue, e reduzido por egual a uma cousa inexpressiva. A Julia fora degolada com uma navalha de barba, mas com tal furia que no pescoço apparecia uma enorme brecha e a cabeça estava perfeitamente separada do tronco. Junto do cadaver jaziam como documentação propositadamente ali deixada pelo assassino, o instrumento do crime e o bonet que o machinista usava em serviço.

Na fabrica, o panico e a commoção produzida pela tragedia foram enormes. O trabalho cessou e no pateo do edificio juntaram-se todos os operarios, uns 470, em que predmoninavam as mulheres, comentando de diverso modo o horrivel acontecimento. O marido atraiçoado, no entanto, continuava a encarar toda a scena com o stoicismo irreductivel de que dera sobejas provas durante seis largos annos de vida…

CAMINHO DA MORGUE

Um dos operarios, por ordem do director da fabrica, o sr. Theodoro Ferreira Lima, foi participar o caso á esquadra da rua do Valle de Santo Antonio, e o policia de serviço proximo do edificio foi buscar duas macas para os cadaveres serem transportados para a Morgue: uma áquella mesma esquadra, e outra ao posto da guarda municipal em Xabregas. Entretanto, o cadaver da tecedeira era removido do esconço onde ella fora assassinada para a officina de tecelagem e ali estendido sobre uma taboa. Vestia saia de riscado azul, blusa de chita com [ranos] brancos e encarnados, calçava botas gaspeadas de polimento e sobre o peito estendia-se um lenço de ramagens. Nos dedos da mão direita viam-se dois anneis de ouro e nas orelhas umas arrecadas vulgares. Era uma creatura franzina, macilenta, de cabellos negros, corredios, e olhos vivos.

O cadaver do machinista só foi tirado do porão do volante quando chegou á fabrica a maca do posto da guarda municipal. Vestia um trajo azul escuro, o trajo proprio do trabalho e calçava umas botas pretas ordinarias. O Duarte era um homem de estrutura regular, apparentando ter mais edade do que a que realmente tinha.

Logo que as duas macas entraram na fabrica, as dezenas de operariuas que alli se encontravam pretenderam n’uma aglomeração ensurdecedora rodear os dois cadaveres. Mas o encarregado da fabrica não o consentiu e ordenou que ellas apenas satisfizessem esse seu desejo quando as macas sahissem para a morgue e atravessassem para esse effeito o grande pateo do edificio. N’esse momento desenrolou-se então um espectaculo altamente commovedor.

A primeira maca, a do posto da municipal, transportando o cadaver do machinista e conduzida por trabalhadores da fabrica, avançou até o meio do pateo e ahi foram patenteados aos olhares dos curiosos os restos do criminoso. Um pouco atraz estacou a maca da policia com o cadaver da tecedeira. As operarias precipitaram-se doidamente sobre uma e outra e mal defrontaram essas duas massas de aspecto horroroso, proromperam n’um choro convulso, enternecedor, que durante minutos encheu o recinto d’um lamento comparavel a um dobre de finados…

Por fim, ás 4 e meia da tarde, as macas pozeram-se novamente a caminho da morgue, levando o cabo Lourenço a navalha do crime, um objeto usado, de folha muito gasta e o cabo tosco amarrado com um cordel. Nas ruas proximas da fabrica, monticulos de curiosos espreitavam anciosamente o desfile do sinistro cortejo.

O GOLPE INEXORAVEL

Restava[n]os, para completar esta noticia, fallar á familia do criminoso. Dirigimo-nos á rua do Valle de Santo Antonio.

O n.º53, o da residencia do Duarte, é a porta d’um pateo pobrissimo, mas cheio de luz. Junto a outra porta esta[v]a uma creança vestida com modestia, e que deve ter quatorze annos de edade.

– O sr. Duarte, machinista da fabrica de Xabregas?..
– É meu pae… está na fabrica.

A infeliz nada sabe, por conseguinte, da horrivel tragedia.

– E sua mãe?
– Minha mãe está a servir no Chafariz de Dentro.

A situação é realmente embaraçosa. As visinhas que já a rodeiam e souberam pouco antes do caso, não se atrevem a dizer á creança toda a trgica verdade. Limitamo-nos apenas a umas perguntas vagas, a que a desgraçada responde anciosamente, como se no fundo do seu espirito ande a pairar uma sombra negra… Conta-nos que tem mais tres irmãos: Lucilia, de 19 annos, que trabalha na fabrica de collarinhos Barros & Santos; Deodalia, costureira no Ramiro Leão, e José, um pequenito de 5 annos.

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