“EDP é obviamente uma empresa do regime, como foi o BES”
Mira Amaral foi quem mais alertou para as rendas pagas à EDP. Mas depois do ‘engenho’ de Mexia sobre Passos, ficou mais difícil resolver o problema
in: Dinheiro Vivo, 17 junho 2017
Mira Amaral sempre alertou para o nível excessivo de rendas que o Estado paga à EDP. “Rendas” que não são mais que a simplificação de uma sigla quase indecifrável: CMEC, ou custos para a manutenção do equilíbrio contratual.
O tema voltou ao topo da atualidade com as notícias da investigação em curso e foi à luz desta que focámos a conversa com o ex-ministro da Indústria e Energia. Mas a estabilização da banca e os resultados económicos não ficaram à margem.
Os CMEC resultam dos Contratos de Aquisição de Energia (CAE), de 1995, ano em que era ministro da Indústria e Energia. Então faziam sentido, hoje não?
Os paraquedistas que hoje assolaram o setor não tem consciência da situação que herdei em 1987, fruto dos anos da democracia e da desorganização do PREC [Processo Revolucionário em Curso]. Quando cheguei ao ministério, a EDP era uma empresa pública verticalmente integrada, tinha a produção e a distribuição e estava altamente endividada porque as câmaras não pagavam e porque durante o PREC a EDP foi ao mercado buscar dólares em nome da República. A EDP tinha uma capacidade de endividamento no exterior que o país não tinha. Como durante anos fui engenheiro na EDP e conhecia este histórico, sabia que precisava de resolver estes dois passivos o das câmaras e o cambial – cheguei a mandar a polícia entrar em algumas câmaras, como na do Porto ou em Valongo, para os deixar às escuras. Além disso, a distribuição era de péssima qualidade, era preciso que se investisse na produção e na distribuição ao mesmo tempo e a empresa estava altamente endividada não podia fazer as duas coisas. Mandei a EDP investir na rede de distribuição, vital para a competitividade das empresas, e arranjei uma figura para atrair investidores estrangeiros para produzirem energia em Portugal. E essa figura foram os CAE. Escolheram-se as melhores propostas mediante concurso e os vencedores ficaram de investir nas centrais de produção de energia, poupando à EDP o investimento. Os CAE nasceram assim, foram necessários não por razões ideológicas mas por razões financeiras e de melhoria de qualidade, e garantiam cerca de 8%…
Porquê 8%? Estes CAE deviam ter sido depois terminados?
Foi a maneira de atrair investidores. Na altura o risco da República era muito superior ao de 2007 [aquando da atualização dos CMEC]. Depois, os investidores tiveram as centrais com CAE e por razões de igualdade também as centrais da EDP passaram para essa figura. A rede ficou assente em produtores que tinham contratos bilaterais e vendiam energia à rede através dos CAE, que ajudaram a acabar com o monopólio da EDP e a puxar investidores. Com estes mecanismos, não só investiu-se na qualidade da rede como quando saímos do governo, eu e o Luís Filipe Pereira, a EDP era uma jóia da coroa. Acontece que em 2004, com Durão Barroso, o governo assina o MIBEL [mercado ibérico de eletricidade] e resolve acabar com esta lógica de contratos de longo prazo bilaterais entre produtores e rede elétrica nacional, a REN, que eu também tinha criado. E como os contratos envolviam o Estado, que tinha assumido esse compromisso com os produtores, foi-lhes dada a seguinte opção: quem quisesse continuava com os CAE mas quem não quisesse passava para os CMEC, que é o sucedâneo.
Foi um erro?
É outro modelo, não era o meu, e é discutível. Quiseram o MIBEL e isso significava uma concorrência através de ofertas de várias centrais num pólo ibérico. Com esta concorrência, os contratos plurianuais bilaterais deixavam de estar em vigor, mas como o Estado tinha assumido o compromisso com os produtores, arranjou-se aquilo que o próprio nome indica: contratos de manutenção do equilíbrio. Ou seja, simula-se que as centrais vão competir entre si e se no fim do ano não estiverem a receber o que estariam com os CAE, paga-se uma compensação. Mas o que Álvaro Barreto [ministro dos Assuntos Económicos de Barroso] fez foi com a preocupação de não pagar mais do que pagavam os CAE. A polémica está em 2007, aquando das renegociações, com Manuel Pinho e António Mexia já como presidente da EDP. Manteve-se a lógica da neutralidade financeira de 2004 mas parece que os contratos passaram a dar uma compensação à EDP superior aquela que devia ter para assegurar a neutralidade financeira. Os contratos dão uma rentabilidade de 14,2%. Como é que contratos de 2007 pagam mais do que quando ainda estávamos no escudo e o risco da República era superior? Os ‘meus’ eram de 8%, estes pagam muito mais. Eu na altura até cheguei a dizer que o verdadeiro ministro da economia era António Mexia e não Pinho, dado que, ironicamente, os dois vinham do BES, tinha sido Ricardo Salgado a nomeá-los para os lugares e, na hierarquia do BES, Mexia estava acima de Pinho.
Para ficar claro: o problema que identifica está em 2007?
Em 2007. E a solução hoje não é acabar com os CMEC, como alguns dizem. Só chamei a atenção que me parecia que a rentabilidade fixada em 2007 era exagerada, não devia ser tão grande. A rentabilidade que estes contratos deviam ter em 2007 devia ser à volta dos 7,5% e terão na realidade cerca de 14% e este diferencial é o que se chama de renda excessiva. Quando os CMEC surgiram em 2004 procuravam dar a mesma compensação.
A seu entender, porque terá surgido o aumento nestas rendas?
Os CMEC são hoje muito importantes para a EDP porque quando as eólicas entraram em grande na rede, as centrais nos CMEC passaram de trabalhar todo o dia para apenas uma ou duas horas, em apoio às renováveis. Quando não há vento, a central térmica está a funcionar. Moral da história: as centrais passaram a trabalhar pouco tempo. E se uma central está dimensionada para trabalhar o dia todo e passar a vender energia só uma ou duas horas significa ter grandes prejuízos. Os CMEC são vitais para a EDP nesta fase porque quando a eólica entrou em força, estas centrais, protegidas pelos CMEC, deixaram de render o dia inteiro. Por isso é que os CMEC têm grande importância. O problema não foi a liberalização em 2004, foram as eólicas, que vieram relegar as centrais para trabalho pontual, quando não há vento.
Quando foi administrador não executivo da EDP isto era um tema debatido internamente?
Não. Só estive seis meses e não foi um tema discutido na altura.
Ficou espantado com as investigações em curso? Já antes dizia que Mexia era o verdadeiro ministro… Suspeita que a negociação de 2007 teve como propósito beneficiar a empresa?
Não comento investigações, não gosto de julgamentos em praça pública ou mediáticos. Estou a cingir-me a fazer leituras políticas e a dar explicações económico-financeiras e o que sempre disse é que estes CMEC tinham uma rentabilidade excessiva pelos motivos que expliquei. Mas não concordo que se acabe com os CMEC.
O que é que deve mudar então? A fórmula de cálculo?
Sim. O custo de oportunidade do capital que, segundo estudos, daria 7,5%de rentabilidade, sendo essa uma realidade razoável para os CMEC. Se estão a dar mais de 14%, então são excessivos.
Fala-se que o governo poderá tentar recuperar 500 milhões de euros em rendas pagas nos últimos dez anos. É ajustado?
Não fiz as contas, não posso falar. Mas acho curioso que isto tenha andado adormecido e ter sido preciso surgirem notícias para o governo acordar e lembrar-se que havia isto. E depois há outra coisa: no governo de Passos, Henrique Gomes [secretário de Estado da Energia que tentou impor o “interesse público” ao poder excessivo da EDP] avançou com um pacote para cortar estas rentabilidades, o famoso pacote contra as rendas excessivas. E parece-me que a gestão de topo da EDP conseguiu convencer Passos Coelho que as rendas não deviam ser cortadas, porque assim a última fase de privatização da EDP daria mais dinheiro e isso é música para um Ministro das Finanças. Foi isso que se passou na última fase de privatização da EDP, as rendas excessivas não foram cortadas, Henrique Gomes ficou a falar sozinho e demitiu-se. Hoje, vejo entrevistas dele e também de Álvaro Santos Pereira [ministro da Economia de Passos] onde falam da dificuldade que tiveram a lutar contra este lobby e a EDP foi privatizada naquele conceito que se chama ‘embelezar a noiva’ para privatizar, ou seja com rendas excessivas. A gestão de topo da EDP gostava de fazer um brilharete com lucros mais elevados mas sabiam perfeitamente, e tinham toda a razão, que se a EDP fosse privatizada antes do ataque às rendas excessivas depois o poder político teria mais dificuldade em atacar rendas, porque já teria outro compromisso para honrar.
Passos Coelho, todavia, gaba-se de ter sido o único cortar as rendas. Tendo em conta o que acabou de contar e que sempre que um ministro ou secretário de Estado tentou mexer nas rendas acabou demitido ou a sair pelo próprio pé, acha que o Estado tem estado capturado pela EDP?
Costumo dizer o que estudei dos manuais de economia e um dos capítulos é sobre a teoria da captura e isto tem a ver com o capitalismo de compadrio. Muitas vezes já não divido empresas em públicas ou privadas, chamo-as empresas do regime, porque existe entre elas e o poder político uma cumplicidade que explica muito do que se tem passado.
A EDP é uma empresa do regime?
Como foram, numa fase, o BCP, o BES e a CGD. Portanto, a EDP é obviamente uma empresa do regime. Essa teoria da captura tem alguma aplicação nestes casos.
Diria que a gestão de topo da EDP teve mais força sobre o governo que a troika? Uma das exigências da troika era clara: atacar as rendas excessivas.
A gestão de topo da EDP teve a arte e o engenho de acenar este argumento às Finanças: ‘Vocês não cortam as rendas da EDP que assim vale mais na privatização.’ E eu sei o que é que a casa gasta nas Finanças. Isto foi feito num contexto em que a troika não se cansou de alertar que as rendas excessivas eram uma condicionante à competitividade. Há empresas que gastam mais em eletricidade do que em custos laborais. Quando o governo de Passos andava muito preocupada em reduzir custos laborais também se devia ter preocupado com os custos da energia. É verdade que depois, pressionado pela saída de Henrique Gomes, fez alguns cortes, mas fazê-los quando os chineses já eram acionistas legítimos da EDP é bem mais difícil do que se tivesse sido antes e foi esse o engenho que, a meu ver, a gestão de topo da EDP teve sobre o governo.
Eduardo Catroga disse na conferência de imprensa de reação da EDP, ao lado de Mexia, que “não se brinca com cotadas”. Como é que entendeu esta frase?
Obviamente tem de se ter respeito pelos acionistas, daí ser mais difícil cortar rendas do que antes, mas as empresas cotadas estão obrigadas a reger-se por leis. Além disso, se formos falar em cotadas, sabe-se o quão mal se portaram algumas, como o BES ou a PT. Respeito acionistas mas não são algo absoluto que não se pode criticar.
A cotação da EDP ou do próprio Mexia como gestor estão sobrevalorizadas à conta das rendas?
Se a empresa tiver rendas excessivas em vez de rendas normais tem lucros mais elevados. Aí nem critico a gestão de topo da EDP, porque tentou fazer o que podia para subir o lucro e o seu rendimento.
Teria feito o mesmo?
Não sei se teria feito com o mesmo à vontade mas até percebo. Mas tenho de criticar o poder político por ter sido capturado.
Da esquerda à direita todos os partidos defendem que se mexa agora neste assunto…
Andei a falar sozinho muitos anos.
Uns defendem que se acabe com os CMEC; António Costa defende renegociar. O que se pode fazer agora, tendo em conta que a EDP é privada e de capital maioritariamente chinês?
Se eles entraram na empresa com estes contratos em vigor, pode tentar-se negociar mas não se pode impor. E é por isso que disse que é muito mais difícil agora do que antes da última fase da privatização. Não é por serem chineses, é por serem acionistas que entraram na empresa e compraram as ações tendo em linha de conta a rentabilidade, excessiva ou não, que lhes foi garantida. Eu estive no governo, conheço o comportamento da classe política e sei que quando há uma notícia com impacto mediático, vai-se logo atrás. As declarações de Costa e outras do governo vêm no sentido de tentar dar resposta às notícias que sairam. Há muito tempo que ando a chamar a atenção para isto mas também digo com toda seriedade e responsabilidade, não é fácil neste momento fazer um corte nas rendas excessivas da EDP. Em Espanha, não falamos de CMEC mas de preço de venda da energia eólica à rede, houve um corte drástico, as empresas reclamaram para o tribunal e o Supremo veio dar razão ao governo espanhol. Neste caso falamos de responsabilidades perante os acionistas e não de um preço político de venda à rede como em Espanha. Mas Espanha está neste momento com um preço de energia ao consumidor mais favorável.
E um défice tarifário muito alto.
Isso também. Há razão em dizer que os preços da energia elétrica na Dinamarca ou Alemanha são superiores aos portugueses, embora os portugueses sejam superiores à maior parte da Europa, mas a Alemanha e a Dinamarca não geram défices tarifários, passaram para os consumidores todos os custos das eólicas, foram transparentes, não fizeram esta figura criada por Manuel Pinho que é simpaticamente pouparem-nos num ano aumentos do preço mas depois ter sobre a cabeça cinco mil milhões de euros de dívida tarifária que vamos pagar com juros nos próximos anos. E cinco mil milhões é uma CGD. É uma dívida que será paga por consumidores e não por contribuintes
Aproveitando a referência à CGD: A estabilização da banca também exigiu negociações com acionistas mas é hoje uma bandeira do governo. O sistema bancário está mesmo estável?
Está melhor do que quando tomaram posse. Foi feito e aprovado em Bruxelas um plano de recapitalização da CGD mas chamo a atenção para o plano industrial [cortes], que é duro e mais difícil de implementar na CGD do que num privado. Num banco privado quando fecham balcões ninguém dá por isso, na CGD qualquer balcão fechado levanta logo contestação. O plano será executado, estabiliza a CGD, mas Paulo Macedo tem uma tarefa mais difícil do que se estivesse à frente de um banco privado. O BPI também foi estabilizado, o BCP com o último aumento de capital e a gestão de Nuno Amado, muito competente, também está estabilizado… A situação é melhor do que há uns tempos.
É justa a crítica de que Passos Coelho empurrou com a barriga os problemas do setor?
Isso tem a ver com outra coisa. Quando se fala em crescimento de 2,8% do PIB e que havia alternativa… As coisas não são comparáveis. Passos teve uma vida extremamente difícil, tomou conta de um país na bancarrota, sem acesso a financiamento, e não se pode resolver tudo ao mesmo tempo. Passos não resolveu todas as questões da banca e este governo deu um contributo positivo para alguma estabilização. As dificuldades de Passos eram outras… não havia dinheiro para salários ou pensões.
Por resolver ainda está o Novo Banco, cujos termos da venda estão a ser muito criticados.
Se calhar foi o negócio possível. Sou sensível aos argumentos dos grandes bancos, que são eles que estão a aguentar o Novo Banco. Este mecanismo europeu tem uma grande contradição. Reparem: põe os concorrentes a ajudar e financiar os bancos em dificuldades. Mas as ajudas de estado a um banco em dificuldade já são proibidas. Se fosse gestor da CGD ou do BCP não gostaria nada do que se passa, porque são os outros bancos que estão a resolver o Novo Banco.
A alternativa era nacionalizar…
Ou o resgate pelos contribuintes. Se calhar este é um mal menor. A nacionalização assusta-me e não é por razões ideológicas, antes financeiras. O banco vai precisar de aumentos de capital e as finanças públicas mal aguentaram o aumento de capital da CGD.
Tendo em conta a solução de governo, ficou surpreendido com os resultados? E o crescimento que se verifica é sustentável?
No primeiro trimestre houve um crescimento de 2,8% face ao mesmo período de 2016. No segundo trimestre o salto deve ser similar, por uma razão simples: os dois primeiros trimestres de 2016 foram fracos, o PIB cresceu 0,9%. O governo era recente, havia desconfiança e o crescimento foi fraco. Mas esbatida a suspeita sobre a solução política, a economia acelerou na segunda metade do ano. Logo, quando entrarmos no segundo semestre de 2017, o crescimento vai ser mais fraco porque o denomidador para o cálculo é mais elevado.
Mas é sustentável?
Ainda estimo que possamos crescer até 2,5% este ano. Mas como este ano a economia acelerou, duvido que no próximo ano os crescimentos sejam desta ordem de grandeza, serão mais baixos. E se Passos estivesse a fazer as suas funções como líder da oposição, o que ele devia dizer não é que vem aí o Diabo. Devia dizer: se fizessem as reformas que eu indico, estaríamos a crescer muito mais.