Há “situações preocupantemente paralelas” que indiciam nova crise como em 2008
Aviso. Presidente da CMVM, a título pessoal, alerta para os vários sinais que se veem no horizonte. E pede urgência no avanço de ações
in: Dinheiro Vivo, 13 novembro 2016
Volvidos oito anos, aprendemos a ver os riscos mas não a reduzi-los. E agora há indicadores que mostram que estes voltaram a pairar sobre as economias e, não tendo sido feito o prometido desde 2008, os riscos não estão contidos. De forma simples, é assim que se pode ler o teor do artigo de Carlos Tavares “A crise financeira: aprendemos as lições?”, agora publicado no site da CMVM. “Esperemos que a síndrome do ‘desta vez é diferente’ (…) não volte a turvar o discernimento dos decisores, como tantas vezes tem acontecido na história.”
Carlos Tavares, presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários desde 2005, está em posição privilegiada para apontar o que não foi feito e o que isso implicará. Neste artigo põe não só o dedo na ferida como lhe carrega: além do que não foi feito, aponta os riscos que vê já em acumulação.
“Encontramos hoje situações preocupantemente paralelas às que precederam 2007-2008”, diz. Como exemplos aponta “o comportamento dos preços de vários ativos, financeiros e reais, do excesso de endividamento dos agentes, a tomada de riscos excessivos” e a sobrevivência de “partes substanciais dos mercados com défices de transparência”. Agora, porém, e ao contrário de 2008, um fator é bem mais grave: nem bancos centrais nem países têm armas.
Ao longo do artigo, Tavares faz um diagnóstico às promessas de 2008 que pouco ou nada avançaram. No caso europeu, detalha, “a necessidade de consensos entre Estados e instituições” fez que muito do trabalho necessário ficasse “aquém do desejável para atacar os problemas que estiveram na origem da crise e prevenir a ocorrência de outros que possam levar a uma nova e, certamente, ainda mais dramática crise”.
Reconhecendo, todavia, que “algumas coisas mudaram” para melhor, Tavares realça que “em compensação” surgiram novos focos de risco nos mercados e por via da “política monetária”. E a estes “novos riscos” junta a não resolução de outros, como a postura das instituições “causadoras da crise” – bancos, auditores e agências de rating.
“Parece consensual que os progressos no governo das instituições, em geral, ficam aquém do desejável. Infelizmente (…) as políticas de gestão de riscos e os comportamentos de diversas variáveis trazem-nos a indesejável memória” do pré-2008.
“Dadas as circunstâncias descritas, a única solução viável é fazer tudo o que for possível (por parte de todos os agentes) para evitar uma nova crise”, sintetiza o economista, já ao DN/Dinheiro Vivo.
As grandes promessas de 2008
O líder da CMVM começa por lembrar as recomendações mais repetidas no pós-crise: bancos mais pequenos; desalavancar dívida; mercados mais regulados; produtos menos complexos e melhor gestão de risco. Volvidos oito anos: a banca está maior, o endividamento também, metade das transações não são reguladas e a gestão do risco permanece aquém do desejável.
Comecemos pelos bancos. “O objetivo declarado de evitar” os bancos too big to fail não foi “totalmente conseguido”, aponta no artigo, lembrando que a existência de instituições gigantes traz, por si, “um forte elemento de risco moral incentivador de uma cultura de risco agressiva”. Desde 2008, as fusões de instituições continuaram, tanto que, nos EUA e na Europa, já superam o registo de 2006 e 2007. Isto quando no pós-crise o caminho era limitar “a dimensão dos bancos” para serem “mais fáceis de supervisionar”, diz.
E quanto às dívidas? Eram para reduzir e aumentaram. “As questões que se colocavam há oito anos relativas ao excesso de endividamento não só não foram resolvidas como se agravaram significativamente”, refere, calculando o endividamento global em 285% do PIB. E como desalavancar tudo isto? Aqui Tavares lembra “um governador de um banco central” que, em 2008, apontava que a principal questão era saber “que parte da dívida (pública e privada) é que poderia ser efetivamente paga”. Agora, diz, a questão “ganha nova e reforçada acuidade”.
Já sobre os mercados, e depois de lembrar que a negociação não transparente era, no pré-crise, responsável por metade das transações, o líder da CMVM aponta que hoje a situação é quase idêntica. “A negociação transparente em mercado regulamentado continua a representar apenas 55% do total.” Além disso, a colocação de produtos complexos está “pujante”.
Juros, bolhas e o grande desafio
Carlos Tavares dedica ainda parte do artigo a analisar o impacto das medidas monetárias tomadas, apontando como “um dos contributos para a ineficácia” destas a “persistente redução da velocidade da moeda”, hoje historicamente baixa. Os agentes estão a reter moeda, bloqueando “o efeito da oferta de moeda sobre a inflação”, diz. E, mesmo reconhecendo que as medidas surgiram para combater a deflação, aponta no artigo que a inflação geral está a esconder comportamentos distintos entre produtos. A queda dos bens duradouros está a segurar a inflação e “há outros preços onde os efeitos se têm feito sentir e com preocupante significado”.
Carlos Tavares aponta aqui para a emergência de bolhas em classes de ativos, bolhas “cujo desenlace é tipicamente o rebentamento”. Entre estes, nomeia os mercados acionista – “cujos preços não encontram fundamento evidente no desempenho das empresas” – e obrigacionista e alguns mercados imobiliários. Ou seja, a política monetária, que teve uma eficácia limitada, trouxe porém “efeitos secundários reais” que “têm contribuído para a acumulação de riscos” de “preocupantes paralelos” com 2008. No mercado obrigacionista, a mesma pressão inflacionista tem igualmente feito expandir os preços.
Mas as taxas de juro baixas terão de subir. E esta subida, “inevitável embora incerta no tempo e na amplitude”, se não for acompanhada por crescimentos significativos terá não só um efeito “dramático” no rendimento das famílias e empresas – subida do custo do crédito – como provocará igualmente “uma queda de preços das obrigações” – a cada ponto percentual de subida do juro, haverá uma queda do preço das obrigações de 7%, calcula.
Ora, como grande parte das obrigações públicas e privadas estão nas mãos de bancos, institucionais e supervisores bancários – a Fed detém o equivalente a 13% do PIB dos EUA, o BCE mais de 9% -, a subida dos juros implicará, alerta o autor, “a emergência de perdas vultuosas” por estes agentes e também “pelos bancos centrais”. Estas perdas podem, no limite, pôr em causa o próprio equilíbrio dos supervisores. É por isto que o líder da CMVM vê na saída deste quadro de muito baixas taxas de juro “o maior dos maiores desafios” dos bancos centrais hoje.
Carlos Tavares termina lembrando Alan Greenspan, o mesmo que relativizava tudo em 2007. Agora, a visão é outra: “Este é o pior período de que me lembro desde que tenho estado no serviço público”, disse em junho. “Eu não sei como se vai resolver, mas vai haver uma crise.” Por tudo isto, Carlos Tavares recomenda mais do que uma vez: supervisores, bancos centrais e agentes políticos devem coordenar-se e definir os respetivos papéis no ataque aos riscos que, neste momento, já pesam sobre os mercados e, logo, sobre o globo.