
Há 80 anos, os Jogos Olímpicos, a cargo do regime nacional-socialista, realizaram-se num clima de tensão internacional crescente, mas Hitler mostrava a Alemanha como uma nação pacifista, que se rearmava para assegurar a paz na Europa. Entre as várias formas de propaganda a que o regime recorreu na ocasião, conta-se um livro promocional dirigido aos turistas, publicação de onde partimos para uma pequena viagem pela realidade alemã em 1936 mas também pela doutrina do próprio ditador, posta em livro dez anos antes com a publicação do Mein Kampf.
in: “JN História”, nº3, Maio 2016
Bibliografia consultada e/ou recomendada:
A organização dos Jogos Olímpicos (JO) de 1936, há 80 anos, foi para Adolf Hitler a disponibilização de um dos maiores palcos do mundo não apenas para mostrar a beleza da “Nova Alemanha” aos milhares de visitantes que estiveram no país pela ocasião do evento mas também para apresentar a visão nacional-socialista da História europeia dos anos anteriores. Entre as várias formas a que Hitler recorreu para propagandear os méritos e razões de ser da sua ideologia, conta-se a edição de um livro promocional dos JO de 1936, editado em várias línguas incluindo português, para ser distribuído pelos turistas que se deslocaram a Berlim para as olimpíadas.
A ideia era mostrar ao mundo a “Nova Alemanha”, país renascido das cinzas depois de anos de martírio e miséria vividos entre o final da Grande Guerra e a ascensão de Hitler, e os resultados já obtidos por este nos primeiros anos de poder. O livro realça um país pacífico, organizado, metódico e caloroso face ao estrangeiro que o visita. Esta é a faceta da Alemanha que se promove em 1936 para turistas e comitivas estrangeiras. “O fogo olímpico resplandece num país que recuperou a sua alegria e a satisfação e a felicidade de confiar no seu futuro”, assegura-nos no arranque o livro editado pela Volk und Reich Verlag. “Este brilho que no Ano Olímpico fulgura na Alemanha, não é o brilho de um momento envernizado de cortesia, que emurcheça como flores colhidas (…). Não, este brilho não é uma pintura artificial, mas provém do coração da Nação inteira, brota da própria terra germânica, como o esplendor de uma paisagem banhada pelo sol.”

Este é o lado da “Nova Alemanha” que deve ser mostrado aos turistas durante os 15 dias dos JO, suplantando a envolvente internacional e as crescentes críticas a um regime de pretensões expansionistas e totalitário. É que apesar do espírito de paz e fraternidade das olimpíadas, a sucessão de eventos no palco internacional nos dias, meses e anos anteriores a Agosto de 1936 já evidenciava que o pacifismo tinha voltado a servir de desculpa para rearmamentos em massa – especialmente da Alemanha – e que o jogo dos impérios e dos territórios estava novamente na ordem do dia. No interior da Alemanha, também já o nazismo vinha impondo a ordem suprimindo liberdades públicas e privadas e o plano de Hitler para a reconstrução social, moral e racial do país avançava já a passos largos para uma distopia de repressão, violência e genocídio.
Entre a subida de Hitler ao poder e a realização dos JO de 1936, e só a título de exemplo, o novo poder na Alemanha já tinha promulgado as primeiras leis para o aperfeiçoamento do “novo Alemão” por meios biológicos, a grande maioria das associações culturais e sindicatos independentes tinham sido liquidados e mais de mil jornais encerrados e outros 350 fechado voluntariamente. Também a perseguição aos judeus já era visível a muitos, tanto que em julho de 1936, a um mês do início dos JO, Stefan Lex, jornalista israelita naturalizado checoeslovaco, tenta suicidar-se em plena reunião da Sociedade das Nações para chamar a atenção para a questão judaica, então “ignorada” por uma diplomacia paralisada perante a guerra e o recrudescimento de tensões internacionais.
O palco internacional
Os JO 1936 coincidiram com o eclodir da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a ponta do icebergue do que então se vivia. Também a soberania sobre a região de Danzig – hoje Gdansk, na Polónia – aquecia a cada vez mais questionada Sociedade das Nações, tal como os boatos sobre uma aliança militar entre Roma e Berlim e os voos de dirigíveis alemães nos céus de Inglaterra, que traziam à memória os bombardeamentos que os Zepellin fizeram chegar às ilhas durante a Grande Guerra – pouco eficazes, note-se.
Como efeito e causa deste recrudescimento de tensões esteve também a decisão alemã de rasgar cláusulas do Tratado de Versalhes, com os nazis a decretarem em Março de 1935 o restabelecimento do serviço militar obrigatório por um ano, duração duplicada pouco depois. A justificação? O crescimento da União Soviética, a manutenção da paz e a defesa da Europa da ameaça bolchevique. “A história julgará o bem fundado desta medida e esperamos que se manterá a paz. Se vier a guerra, o julgamento da história será a nosso favor. O gesto do Reich nada tem que ver com o militarismo. Foi a necessidade que o ditou. É um elemento de vida, pois aumenta a segurança da Alemanha e da Europa”, justifica então o Voelkische Beobachter, órgão oficial dos nacional-socialistas. O reactivar e reconstruir das capacidades bélicas alemãs, tal como a recusa em continuar a pagar indemnizações de guerra impostas por Versalhes, foram pilares essenciais da recuperação económica encetada por Hitler que, apesar de assente em enormes créditos externos pagos à custa de territórios conquistados, no desmantelamento de sindicatos ou pelo congelamentos dos salários ao nível da Grande Depressão, permitiram baixar o desemprego no país, reforçando o apoio popular aos nazis.
O livro entregue aos turistas para promover a pacífica Alemanha dos JO não passa ao lado disto, elogiando a recuperação económica em curso desde 1933 e reiterando a ideia de que o rearmamento visava unicamente a manutenção da Paz, promovendo a lógica que se pretendia fazer singrar. “A obra reconstrutora da Alemanha não pode ser realizada na guerra mas somente na paz. Por isso salvaguardam no interior do Reich os soldados políticos a paz do Povo e nas fronteiras os soldados do exército, a paz da Nação. E assim a Alemanha preserva-se a si e à Europa dos ataques da revolução mundial bolchevista”, explica-se aos turistas. Se havia mais militares e mais armas, tal era apenas para assegurar que havia mais paz e menos bolchevismo na Europa. Afinal, e em 1936, a Alemanha olímpica irradiava pacifismo.

“Já não há envenenado ódio e guerra civil a esfalecer este povo, as suas fábricas deixaram de estar paradas, os habitantes já não se consomem em atribulações e misérias. Paz, fé e confiança criaram uma Alemanha contente que agora alegre e vestida de gala recebe os seus hóspedes cordialmente”, diz o livro promocional aos turistas sobre o país que vão encontrar em 1936. A ideia e o espírito olímpico deviam esconder os receios e a psicose de guerra em que a Europa estava novamente envolvida. “Berlim transformar-se-á no centro do desporto do mundo. O espírito da juventude alemã é inspirado pela camaradagem. Não pensa na guerra. Pelo contrário, deseja entender-se com o mundo inteiro e colaborar na organização de uma Europa pacífica, onde cada povo tenha o seu lugar ao sol”, dirá Armand Massard, presidente do Comité Francês dos JO, a dias das olimpíadas.
O desporto e a educação nacional-socialista
A recuperação económica e o rearmamento do exército eram apenas duas ramificações do plano posto em prática por Hitler para a criação da “Nova Alemanha”, plano onde também o desporto e a cultura física tinham um lugar destacadíssimo no novo modelo educativo do jovem alemão, daí a importância que o regime atribuía à organização mas também aos resultados nos JO 1936 – seriam a confirmação de uma superioridade física. Apesar dos dissabores servidos por Jesse Owens (ver texto secundário) e pela seleção alemã de futebol ao Führer – perdeu nos quartos-de-final com a Noruega, por 2-0, na primeira vez que Hitler viu um jogo de futebol -, a Alemanha acabou por ser o país que mais medalhas conseguiu, com 101, ainda que tenha sido também o país com mais atletas em competição.
“A educação deve ter em mira, em primeiro lugar, o aperfeiçoamento do físico, pois, em regra, é nos indivíduos sadios e fortes que se encontra a maior capacidade intelectual”, escreveu Hitler em 1926, no Mein Kampf, sobre o sistema educativo que desejava para a Alemanha. “Não tem qualquer interesse que se sobrecarregue o cérebro das crianças com excesso de conhecimentos que, a prática demonstra, só são conservados numa proporção insignificante.” O Führer via na forma como a Alemanha educava os jovens a razão de parte dos problemas do país, incluindo a derrota de 1914-18, defendendo por isso “a redução dos programas e das horas de estudo” de História e de línguas estrangeiras, cujo tempo passaria a ser usado em prol “da cultura física, do carácter, da vontade, do poder de decisão”. Às duas horas por semana previstas nas escolas alemãs para o exercício físico, Hitler contrapôs com duas horas diárias.
Para o ditador, o desporto desempenhava uma parte essencial na formação do Novo Alemão, não só pelo desenvolvimento do físico dos jovens mas também para “prepará-los para suportarem todos os reveses”. Entre os desportos, Hitler destaca o boxe. “Não há desporto que estimule tanto o espírito de ataque”, aponta no MK. Para o Führer, a educação devia “ser orientada de tal maneira que um jovem, ao deixar a escola, não seja um semipacifista, um semidemocrata ou coisa que o valha, mas um verdadeiro alemão, na mais ampla acepção da palavra”, declara.
Moldar desde cedo as personalidades era também um dos objetivos da reforma nazi ao sistema educativo, para a qual o ciclo de ensino só terminava depois do serviço militar obrigatório, sendo este o corolário de anos de um ensino já com grande componente hierárquica, física e ao estilo militar. Só com esta preparação prévia seria possível fazer do serviço militar não uma etapa inicial da instrução de um jovem mas a sua etapa final, podendo assim o exército “transformar jovens já perfeitos do ponto de vista físico em verdadeiros soldados”. E obedecer e calar eram também dois pilares que deviam ser aprendidos com o serviço militar. A “mais alta escola da educação nacional” devia ensinar o jovem a “aprender a calar-se, não só quando é censurado com razão” mas “também aprender a suportar a injustiça em silêncio”, idealiza Hitler no Mein Kampf.

Para garantir que o jovem alemão se mantinha no caminho decretado pelo regime, surgiram inúmeras organizações juvenis nazis, não só para a promoção do físico mas também da doutrina, algo que o livro promocional dos JO não ignora. Segundo informa o mesmo aos turistas, mais do que recuperar o país, “é preciso manter e fortificar sempre de novo a comunidade popular e a coesão nacional readquiridas”, justificando assim o trajeto da juventude alemã: “Está traçado o caminho a seguir pelo jovem alemão. Depois de ter vivido as concepções fundamentais do Nacional Socialismo no Jungvolk (Vanguardistas Alemães), e na Hitlerjugend (Juventude Hitleriana), serve a Nação com a pá no Serviço de Trabalho e com a arma no Exército”. Exigia-se aos líderes do futuro uma “formação particularmente esmerada”, que dotasse “a nova geração de chefes da conveniente educação física, de carácter, psíquica, espiritual e científica”, explica-se aos visitantes estrangeiros.
O legado nazi que sobreviveu
“Às 16h em ponto, conforme o programa, Hitler dá entrada no Estádio. Ovações frenéticas. O hino nacional é cantado de pé pela enorme multidão que peja o anfiteatro. Coral monstro de quase cem mil pessoas, reforçado ainda por poderosos alto-falantes. São içadas as bandeiras das cinquenta nações que tomam parte nos Jogos e que tremulam ao vento a par do pavilhão nazi e da bandeira olímpica.” As olimpíadas de 1936 arrancaram a 1 de agosto, com os 427 representantes alemães a assegurarem ao país a maior comitiva, seguidos pelos 357 norte-americanos. Portugal contava com 19 atletas.
Da cerimónia de abertura, e além das passagens do Zeppelin “Hindenburgo” pelo Estádio Olímpico, ficou a ideia do “triunfo do método” e de um espetáculo até então sem paralelo. “Pessoas que assistiram aos Jogos anteriores confessam que a festa inaugural de Berlim foi de facto a mais imponente e a mais emocionante”, escreve o enviado especial do Diário de Lisboa, Ribeiro dos Reis, a 9 de agosto. As boas relações entre Lisboa e Berlim ficam patentes com a saudação a Hitler dedicada pelos atletas portugueses, de braço estendido, numa fase da cerimónia que deu azo a embaraços. “A saudação em frente à tribuna de Honra, onde se encontrava o Führer, presta-se a comentários”, relata Ribeiro dos Reis. “Houve muita gente que confundiu a saudação olímpica com a saudação hitleriana.”

A saudação nazi não foi apenas utilizada por países amigos, já que muitos dos atletas presentes não sabiam como saudar Adolf Hitler. Isto à exceção dos ingleses, que para contornar o problema levaram chapéu de palha, levantando-o como saudação. Já os franceses, cuja participação nos JO esteve em dúvida dado o novo escalar de tensões entre os países, acabaram por saudar o Führer de braço estendido, sendo ovacionados depois de um gesto que até Hitler terá estranhado. “Não devemos ter a mínima dúvida de que o inimigo mortal, inexorável do povo alemão é e será sempre a França. É indiferente que seja governada por Bourbons ou jacobinos, bonapartistas ou democratas burgueses, republicanos clericais ou bolchevistas vermelhos: o objectivo da sua atividade política será sempre (…) que a Alemanha fique desunida e fragmentada”, diz Adolf Hitler sobre os franceses no Mein Kampf.
A cerimónia de abertura dos JO de 1936 ficou no entanto para a memória por mais do que o embaraço da saudação a Hitler, deixando para as gerações futuras aquele que é hoje um dos momentos mais icónicos e aguardados nas aberturas de quaisquer olimpíadas, ainda que hoje seja uma recordação distante que é de origem nacional-socialista a ideia de trazer a tocha olímpica (o facho olímpico) numa corrida de estafetas desde a Grécia.
Hitler adorava os clássicos. Gregos e Romanos seriam, provavelmente, os únicos que colocava no mesmo patamar que os alemães. “Se nunca tivesse existido o mundo clássico, se os Alemães tivessem descido para os países do Sul, de clima mais favorável, e ali tivessem contado com os primeiros auxílios da técnica, empregando ao seu serviço raças que lhes eram inferiores, então a capacidade criadora latente teria produzido uma civilização tão brilhante como a dos Helenos”, defende no MK. A importância dos clássicos para o Führer era de tal ordem que até os deixava existir no novo programa educacional alemão. “Não se deve afastar o estudo da história antiga, pois a história romana, bem apreciada nas suas linhas gerais, é e será sempre a melhor mestra não só para o presente como para o futuro. O ideal da cultura helénica, na sua típica beleza, deve ser aproveitado (…). A luta que hoje se agita tem o grande objectivo de, ligando a sua existência ao passado milenar, unificar o mundo greco-romano com o germânico”, diz no mesmo livro.
E se a organização dos JO na Alemanha já se apresentavam como uma forma de “unificar o mundo greco-romano com o germânico”, a organização procurou reforçar esta união de forma ainda mais singular, decidindo ligar os dois países através de uma inédita corrida de estafetas desde a praia de Maratona – de onde partiu a corrida original em 490 aC – e Berlim, numa homenagem que visou reforçar a associação entre os povos clássicos e os alemães. Foi desta forma que nasceu a tradição da viagem da tocha de Olímpia até à cidade onde se realizam os Jogos.
A 21 de julho de 1936 foi aceso um fogacho que, de mão em mão por três mil estafetas, ligou a Grécia à Alemanha pela Bulgária, ex-Jugoeslávia, Hungria, Áustria e ex-Checoslováquia. “A maior corrida de estafetas que o Mundo jamais viu”, “ligando com espiritual laço de fogo o santuário grego fundado há quase 4000 anos por emigrantes vindos do Norte e a nossa pátria alemã”, apontou na altura Theodor Lewald, presidente do Comité Olímpico Alemão, reforçando a ligação fictícia entre alemães e clássicos. A viagem da tocha foi um golpe de propaganda que superou o criador e ainda hoje sobrevive.
O uso da propaganda
Hitler vai explorar até aos limites a propaganda, aproveitando da melhor forma a experiência e as ideias que acumulou enquanto chefe de propaganda do Partido Nacional Socialista, antes de chegar à liderança do mesmo em 1921. Dessa fase, percebeu e reteve o potencial da propaganda, construindo uma teorização sobre o tema que mais tarde colocaria em prática, tal como ocorreu com os JO.
No livro distribuído pelos turistas a promover o evento e a “Nova Alemanha” é notório o recurso a um dos mecanismos mais eficazes da propaganda, com a estrutura da publicação a assentar na justaposição entre o passado decadente, imoral e miserável vivido pela Alemanha até à ascensão do Führer e o futuro dourado que só este pode trazer. Ao capítulo inicial sobre a Alemanha jovial e bela que recebia os turistas, sucede-se um capítulo dedicado aos anos pré-Hitler, de 1918 e 1933, sob o revelador título de “Anos da Miséria.” Este é o capítulo que lança as bases do guião que se pretende mostrar aos leitores: Hitler é o único capaz de fazer renascer a Alemanha.
Sobre a vida alemã entre a GG e a eleição do líder do partido nazi, o livro promocional explica aos turistas que o país organizador dos JO, apesar de jovial e belo em 1936, “ainda há poucos anos (…) era um país cheio de atribulações e de miséria, dilacerado e indigente, banhado em rios de sangue da fratricida guerra civil, dilacerado pelo flagelo do desemprego, da luta de classes e do desespero geral”. A longa descrição dos anos seguintes à Grande Guerra na Alemanha prossegue reforçando que “a imoralidade espalhava-se indómita por toda a parte”, onde a “corrupção, o crime e a depravação geral faziam a sua entrada triunfal” e “o bolchevismo erguia a sua sanguinolenta cabeça”.
Nesta Alemanha, explica-se aos turistas, “os homens vagueavam, empobrecidos, sem esperança, todos ameaçados pelo espectro do desemprego e da fome, e continuamente alarmados pelos sangrentos combates nas ruas, com que o bolchevismo procurava ir alcançando seu alvo, que era escravizar definitivamente a Alemanha e aniquilá-la como Nação culta europeia”. O caos estava a um passo: “As estradas deterioram-se, a viação férrea não pode renovar o material, e só empréstimos contraídos no estrangeiro e agrilhoando um povo inteiro à escravidão de juros conseguem dificilmente retardar um pouco o descalabro geral.” Os dias passavam “tristes e sombrios” numa Alemanha que “perdeu toda a esperança”. Isto até chegar 1933.
“Deve-se dar o qualificativo de impotentes aos povos que, numa tal emergência, não encontram uma solução heróica. A força vital de um povo, o seu direito à vida, manifestam-se do modo mais impressionante, no momento em que esse povo recebe a graça de um homem que o destino reservou para a realização das suas aspirações, isto é, para a libertação de um grande cativeiro, para a supressão de amargas dificuldades.” Estas palavras foram escritas por Hitler em 1926 e eram agora confirmadas pela sua própria propaganda em 1936: “Só um homem se levanta com fanático ardor contra este andar das coisas: Adolf Hitler” sentencia o livro promocional já no capítulo seguinte à descrição dos anos da miséria na Alemanha, intitulado a “Alemanha de Adolf Hitler”.

A exaltação de Hitler como o “Escolhido” para salvar o povo alemão foi um dos pilares da propaganda e da ideologia nazi que serviu para elevar o líder à categoria de culto, com pequenos altares espalhados por locais públicos e residencias privadas alemãs, num movimento que contava com uma liturgia e datas comemorativas próprias, como o Dia de Hitler, a 20 de Abril, o Dia da Mãe Alemã, no aniversário da mãe de Hitler, o 30 de Janeiro para celebrar a chegada ao poder em 1933, etc… A elevação do Führer ao patamar dos Deuses era já um facto em 1936. “Exprimimos ao Chanceler a nossa preocupação ao ver que o honram duma forma que pertence somente a Deus”, criticam os chefes da Igreja protestante num texto contra a descristianização do III Reich, pouco antes dos JO.
“Os seus princípios doutrinários eram simples e singelos. Podiam ser compreendidos por todos e ele repetia-os constantemente até eles constituírem para todos uma segunda natureza”, confidencia aos turistas o livro sobre o “salvador” nazi, evidenciando a própria teoria de Hitler sobre a propaganda. “A capacidade de compreensão do povo é muito limitada, mas, em compensação, a capacidade de esquecer é enorme. Sendo assim, a propaganda deve-se restringir a poucos pontos (…). Ela tem de se contentar com pouco; porém, esse pouco terá de ser repetido constantemente. A persistência (…) é a primeira e mais importante condição para o êxito”, defende Hitler no MK.
O sucesso da propaganda exigia igualmente uma boa matéria-prima que apelasse diretamente aos sentimentos, mágoas e recordações alemãs, a lenha para incendiar os ânimos, no fundo. E Hitler sabia precisamente onde estava essa matéria-prima, fazendo dela uma das bandeiras que mais apoio lhe trouxe na Alemanha, já que diretamente ligada ao orgulho de um povo que se sentiu excessivamente castigado. O tópico eleito surge também repetidamente no livro promocional dos JO.
O ditado de Versalhes
O tratado de paz imposto aos alemães no final da Grande Guerra foi bastante punitivo, alimentando a miséria mas também o ódio e o ressentimento entre alemães já destruídos por anos de guerra, tal como os restantes países envolvidos. Mas o tratado individualizou, penalizou e culpou a Alemanha como única responsável pela guerra de 1914-1918, que eclodiu em circunstâncias totalmente diferentes da guerra que Hitler levaria a cabo em 1939-45. O excesso do Tratado de Versalhes não era visível apenas para os alemães mas também para ingleses e norte-americanos. John Maynard Keynes será uma das vozes que alerta desde logo que o documento garante o oposto de uma base sustentável para a paz.
O tratado de 1919 é extenso e responsabiliza a Alemanha não só pelo pagamento de indemnizações de guerra como pelos créditos a que os vencedores recorreram – junto da banca norte-americana – para financiar o conflito. Os alemães perdem territórios, vêem amputada a sua capacidade industrial, o acesso a recursos naturais, perdem o controlo das vias fluviais e das pautas alfandegárias, que passam a ser geridas pelos vencedores. Os alemães assistem ainda à apropriação de todo o seu conhecimento, inovação e tecnologia, com Versalhes a impor a perda de todas as patentes registadas pelo país. Segue-se a desmobilização, a proibição de renovar quadros nas Forças Armadas, o corte nos efetivos da polícia, a proibição de ter armamento pesado, a entrega da marinha de guerra e de parte da mercante, entre outras punições. O tratado aumenta as dívidas do país ao mesmo tempo que lhe retira a capacidade de pagar essas mesmas dívidas. Muitas das punições são impostas pelos franceses, que viam em Versalhes uma oportunidade única de tomar o lugar alemão como potência continental.
Os termos do Tratado acabam por reforçar a condenação da Alemanha ao caos nos anos que se seguem a 1918, potenciando a dimensão da crise do país e abrindo espaço para a miséria e desordem, o que acaba por facilitar a ascensão e a propaganda de Hitler. O líder nazi antecipou logo o potencial que Versalhes oferecia: “Quando, no ano de 1919, o tratado de paz foi imposto ao povo alemão, podia-se ter o direito de esperar que justamente esse instrumento duma opressão sem limites fizesse despertar no nosso povo um violento desejo de liberdade”, diz no Mein Kampf. E vaticina: “Como seria fácil para um governo enérgico fazer desse instrumento de extorsão um meio para exaltar ao máximo as paixões nacionais! Como seria fácil, mediante uma inteligente divulgação das crueldades e do sadismo dos conquistadores, transformar a indiferença de todo um povo em indignação, e levar esta indignação até ao furor.” É isso que Hitler fará.
O futuro líder do III Reich perspectiva já em 1926 que o melhor caminho para o coração dos alemães está em Versalhes: “Cada artigo do tratado devia ter sido impresso no cérebro e no coração do povo, até que finalmente a vergonha e o ódio de 60 milhões de homens e mulheres se transformassem numa torrente de chamas de onde se levantaria uma vontade férrea a clamar: Nós queremos voltar às armas!” E conclui: “A opressão desmedida que ele fazia pesar sobre nós, a impudência das suas exigências ofereciam a melhor arma de propaganda para a ressurreição dos sentimentos adormecidos da nação.” Não é assim de estranhar que o “Ditado de Versalhes” acabe por figurar com enorme destaque no livro promocional dos JO, onde é apresentado aos turistas como a razão dos “Anos da Miséria” por que passaram os alemães.
“Enquanto o Ditado de Versalhes desarmava a Alemanha, não lhe deixando aviões, nem canhões, nem tanques, nem armas defensivas e até lhe proibia todos os meios de protecção contra um ataque militar (…) e deixava assim os alemães indefesos e desprotegidos no seu torrão natal, desencadeavam-se no seu interior, em violenta fúria, por todo o tão mortificado país, o assassínio e a destruição, o terror e a sublevação bolchevista.” Não bastasse a derrota na Grande Guerra, como as imposições excessivas de Versalhes deixaram o país demasiado fragilizado e vulnerável para se proteger de outros males, explica o livro aos visitantes de Berlim.
O fim da “trégua ilusória”
Além da viagem pela Alemanha “jovial e bela” dos JO de 1936 e pelos anos da miséria pré-1933, o livro editado para os turistas vem polvilhado de fotografias onde as obras de reconstrução e momentos de trabalho e lazer de operários e famílias alemãs surgem lado-a-lado com imagens dos congressos do partido em Nuremberga – a “profissão-de-fé da Alemanha no seu chefe” – e de demonstrações do novo poderio militar alemão, tudo conquistas só possíveis com os nacional-socialistas. “À frente de tudo, o Führer!”, sentencia a legenda da última página, ao lado de uma foto de página inteira do rosto de Adolf Hitler.

As promessas de paz e pacifismo que se encontram um pouco por todo o livro promocional contrastam com as passagens da mesma publicação onde a amargura e o atribuir de culpas pelos anos de miséria vividos saltam igualmente à vista, dando forma à perspectiva muito específica que Hitler tinha sobre o pacifismo. Paz sim, mas só depois dos alemães tomarem conta do Mundo. “A paz no mundo não se mantém com as lágrimas de carpideiras pacifistas, mas pela espada vitoriosa de um povo dominador que põe o Mundo ao serviço de uma alta cultura”, escreve no Mein Kampf, explicando que “quem, por exemplo, quisesse realmente, do coração, desejar a vitória do pensamento pacifista, teria de se empenhar, por todos os meios, para que os alemães tomassem posse do mundo”.
Poucos dias após o fim dos JO de 1936, no final de agosto, Hitler colocaria num memorando de seis páginas o caminho que a Alemanha deveria trilhar para assegurar o seu futuro, tal como idealizado pelo líder nazi. Além do rearmamento, Hitler decreta então que toda a economia deve ser colocada ao serviço da criação de uma máquina de guerra imparável, através de um plano quadrienal que tomou força de lei em outubro do mesmo ano com a atribuição a Hermann Göring de poderes absolutos para levar a bom porto este plano. Em 1937, perante a falta de matéria-prima para alimentar o gigantesco complexo militar-industrial alemão, o regime nazi desenha a tomada de territórios vizinhos para “obter mais espaço vital”, leia-se terras aráveis e matérias-primas. Em 1938, avança a anexação da Áustria e a tomada dos Sudetas checos e em 1939 segue-se a ocupação da Boémia e da Morávia, até que a 1 de Setembro os nazis avançam sobre a Polónia.

“Que o facho olímpico possa prosseguir a sua carreira através dos tempos para o bem duma humanidade, sempre mais ardente, mais corajosa e mais pura”, pede o Conde Henri de Baillet-Latour, presidente do Comité Olímpico Internacional, na cerimónia de encerramento dos JO de Berlim, três anos antes do avanço nazi sobre a Polónia. O fogo olímpico, porém, só voltaria a arder 12 anos depois, num hiato que para atletas alemães e japoneses chegou a 16 anos, já que a sua participação foi recusada em Londres 1948.
Apesar dos desejos manifestados por Baillet-Latour, muitos já estavam conscientes que o futuro próximo era no mínimo incerto. Ou, recorrendo novamente às palavras de Ribeiro dos Reis na crónica sobre o encerramento dos JO: “À saída da Aldeia Olímpica pensámos durante algum tempo no ideal de paz e de paternidade universal que o ideal olímpico pretende comentar (…). Infelizmente, as nuvens acastelam-se no horizonte e receamos muito que esta ‘paz olímpica’ seja apenas uma trégua ilusória, incapaz de deter o turbilhão que se avizinha.”