Governador pediu à troika em 2011 para criar o “banco mau”. “Infelizmente, na altura não havia sensibilidade para a questão.” Agora, ideia ganha apoio
in: Dinheiro Vivo, 30 maio 2016
As ameaças e riscos que pendem sobre o setor bancário, ainda a cargo com níveis de imparidades elevadas, e o alto nível de endividamento do país, são as principais razões para Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, fazer a defesa pela criação de um “banco mau” que reúna os ativos tóxicos espalhados pelos balanços dos bancos, libertando-os desse fardo.
Apesar das imparidades e correções de valores de créditos que os bancos foram reconhecendo nos últimos anos, o sistema bancário português ainda acumulava perto de 19 mil milhões de euros de créditos em risco no final do ano passado, o valor mais alto desde pelo menos 2007, segundo dados do BdP.
A dimensão do crédito vencido na banca em Portugal reforça as ameaças que pendem sobre um setor já em situação fragilizada e obrigado a renovar os esforços de reestruturação, culpa de um cenário em que as taxas de juro baixas vieram para ficar – esmagando a margem financeira do setor -, e onde o mercado é cada vez mais curto: o total de ativos da banca caiu 25% desde 2010, tanto quanto a margem financeira.
É na soma de todas estas partes que Carlos Costa identifica a necessidade da criação de um “banco mau” para absorver os ativos que ainda intoxicam os balanços da banca, isto apesar da maioria dos grandes bancos presentes no país já terem publicamente recusado a ideia.
O que é?
Este “banco mau”, para o governador do BdP, não é mais do que um veículo constituído com o propósito de gerir os ativos tóxicos do sistema, servindo de “facilitador da venda de créditos problemáticos”, que deve captar investimentos “junto de entidades privadas especializadas” através de uma “estruturação de títulos” a emitir, em “tranches de diferentes níveis de senioridade”, conforme o governador defende no recente relatório sobre a estabilidade financeira (REF), de maio.
“Esse veículo deverá privilegiar a captação de investimentos junto de entidades privadas especializadas e potenciar os benefícios associados à gestão destes ativos por entidades especializadas, com capacidade para efetuarem uma avaliação detalhada da situação económica e financeira das empresas e, mediante os resultados dessa avaliação, proporem a solução mais adequada”, lê-se no REF.
No mesmo relatório, o líder do banco central pede igualmente o avanço de soluções que permitam recapitalizações no setor com recurso a financiamento público quando estiverem em causa bancos viáveis – um “detalhe” igualmente importante para o “banco mau”, que exigirá igualmente a movimentação de dinheiros públicos.
Já esta segunda-feira, em antecipação a um artigo de opinião a publicar no “Negócios”, o mesmo jornal cita Carlos Costa a clarificar que este veículo denominado de “banco mau” não é, de facto, um banco com clientes, depósitos ou concessão de crédito. Antes será uma entidade cujo objetivo é “gerir uma carteira de ativos, que poderá titularizar, colocando as tranches sénior e mezzanine junto de investidores finais, sobretudo institucionais” – a tal emissão de títulos em tranches de diferentes níveis, já referido no REF.
O Banco de Portugal encontra-se a estudar a hipótese de criar um “banco mau” desde pelo menos 2011, altura em que a troika foi chamada a Portugal. Não é por isso surpresa que o supervisor bancário tenha o dossier já bastante adiantado.
No decurso dos trabalhos do Banco de Portugal aquando da chegada de FMI, BCE e CE, o banco central “desenvolveu trabalho próprio e propôs à troika a criação de um veículo para o qual seria transferido o crédito hipotecário que estava no balanço dos bancos com spreads reduzidos e a sua titularização com recurso a uma garantia supranacional europeia” – porque o rating dos bancos e da República não permitiam.
Na altura, porém, nem se queria ouvir falar de tal coisa: “Infelizmente, na altura, não havia sensibilidade para esta questão, pelo que a proposta não avançou”, explicou Carlos Costa, na recente conferência sobre o “Presente e Futuro da Banca”.
Como funciona?
“O elevado nível de crédito em risco do setor bancário configura um risco para a estabilidade financeira por, entre outras razões, constituir um indício de debilidade financeira com impacto na rendibilidade do setor e, potencialmente, afetar a sua capacidade e incentivo para conceder crédito à economia”, diagnostica o Banco de Portugal, no mesmo relatório de estabilidade.
É que apesar da melhoria dos resultados dos bancos em Portugal no ano passado, esta veio da “expressiva redução do fluxo de imparidades e provisões” mas também de uma série de resultados não recorrentes, associados sobretudo à venda de títulos de dívida pública, que ajudaram a maquilhar um pouco do retrato estrutural da banca.
É por esta razão que o BdP aponta no REF que “deverão continuar a ser tomadas medidas para incentivar a redução do stock de crédito em risco”, além de outras medidas de caráter preventivo, pedindo por isso que continue “a ser avaliada” a criação do tal “banco mau”.
“A arquitetura deste veículo”, alerta o banco central, deve primeiro ter em atenção o “enquadramento europeu”, que “impõe atualmente fortes restrições ao tipo de medida que foi adotada em Espanha e na Irlanda durante a crise”. Em causa as exigências de dinheiros públicos que este veículo exige.
A criação do “banco mau” para toda a banca deverá fazer com que os ativos transferidos dos bancos para este novo veículo sejam alvo de um corte (haircut) na sua avaliação na ordem dos 66%, que será o preço a pagar pelo “banco mau” pelos ativos, deixando um “buraco” nos bancos que se livraram dos ativos. Como exemplo prático, vejamos o que se passou com o Banif.
O banco madeirense viu transferidos 2200 milhões de euros em ativos para a Oitante com um desconto de 66%. Ou seja, a Oitante pagou 746 milhões ao Banif por estes ativos e o banco ficou com um buraco pois nas contas estes ativos valiam 2200 milhões. Já para a Oitante foi “obrigada” a emitir obrigações para arrecadar dinheiro e pagar os 746 milhões ao Banif.
A eventual necessidade de recorrer a financiamento público – seja para compensar os descontos aos ativos, seja para financiar emissões do “banco mau” para ter dinheiro para comprar os ativos – choca porém com a norma europeia.
Discussão europeia e não nacional
“A forma como o apoio público se pode materializar tem necessariamente de considerar o atual enquadramento regulamentar europeu, com implicações, por exemplo, no preço de uma eventual garantia”, adverte Carlos Costa no REF.
O governador aponta que o cenário de elevados níveis de “crédito em risco” na banca não é um exclusivo português, sendo antes a regra nos sistemas bancários europeus. Daí que Carlos Costa, na conferência sobre o futuro da banca, tenha insistido na importância de se procurar uma solução à escala europeia e não apenas nacional:
“O elevado crédito em incumprimento não é uma situação exclusiva dos bancos portugueses, sendo partilhada, ainda que em graus diferenciados, por vários outros sistemas bancários da área do euro (como por exemplo, em Itália e na Irlanda, ou, em casos mais extremos, na Grécia e em Chipre). Neste contexto, tenho defendido nas instâncias relevantes que sejam equacionadas soluções à escala europeia.”
Ir ainda mais longe
Além da criação deste veículo especial, o governador defende ainda outro tipo de alterações à lei para facilitar a digestão de imparidades, malparado e insolvências, alterações do lado das empresas e que devem “ser simultaneamente introduzidas” com o avanço do “banco mau”.
O banco central defende neste campo que se procure reduzir os encargos e a morosidade associadas aos “Processo Especial de Revitalização, Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial e Código de Insolvência e Recuperação de Empresas”, alterações que devem promover a “redução dos custos associados à execução do colateral” dado por empresas como garantias e também nos “processos de reestruturação de dívida e de insolvência de sociedades não financeiras”.
Para o governador do BdP, é também importante que, ao mesmo tempo que se cria o “banco mau” e se corta nos custos de revitalização, insolvências ou execução do colateral, avançar com incentivos para que “empresas e/ou credores” recorram aos processos de “reestruturação numa perspetiva preventiva, que possibilite uma recuperação sustentável” das empresas.