Portugal, a esquerda e o exemplo grego

Caso os avanços políticos dos próximos dias/semanas levem à nomeação de um governo liderado pelo PS com o apoio do BE e do PCP uma das prioridades de António Costa deverá ser a de avançar com novas eleições num curto espaço de tempo – prazo que deve ser ajustado entre a urgência de termos um governo com apoio maioritário no imediato e a necessidade de ver esse mesmo governo claramente sufragado. Porque ter um governo que vive desde o primeiro dia com o ónus de não ter ficado à frente das eleições, apesar de constitucionalmente possível, é politicamente pouco recomendável, sobretudo se pensarmos a quatro anos e até além disso.

Apesar de este governo PS/BE/PCP ser a melhor solução possível dado os resultados eleitorais – única, aliás –, a verdade é que este governo de esquerda não deverá ser visto como tendo a mesma legitimidade que um outro qualquer executivo eleito de forma mais ortodoxa, digamos assim. Tem legitimidade para tomar as rédeas do país porque é a solução menos má – face às alternativas de um governo de gestão; de um PR a forçar o PS a ajudar o PSD ou de ver o PSD a fazer tudo ao contrário do que disse na campanha só para reter o poder. Todas estas são soluções condenadas a um fracasso ainda maior e mais rápido. Apesar de ser a “menos má”, e precisamente por isso, este governo de esquerda deverá auscultar os eleitores sobre o que pensam da opção do líder do PS. Só assim essa legitimidade será inquestionável e poderá durar tempo suficiente para que fazer (ou não) a diferença.

Será que todos os eleitores que votaram PS saberiam (ou aprovariam) a possibilidade de um entendimento à esquerda? Apesar dos partidos envolvidos se estarem a arrogar ao direito de ler todos os votos – “os eleitores do PS não querem”; “os eleitores do PS querem” -, a verdade é que tais leituras são impossíveis, pelo simples facto de se verificarem os dois casos. Conheço exemplos de ambos: quem votou PS porque não queria nem PAF nem PCP ou BE; e quem votou PS porque ia votar mais à esquerda mas assustou-se com as sondagens que davam vitória a Passos e Portas. Generalizar que “votaram” ou “não votaram” num cenário ou no outro é não só um abuso, como um erro deliberado de uma classe dominada por quem acha que os fins justificam cada vez mais os meios.

A abertura do PS a um entendimento à esquerda – e a abertura da esquerda a entender-se com Costa – significa no fundo que finalmente existe uma alternativa à falácia que nos últimos anos tanto se esforçou para nos convencer que “não há alternativa” – como se existisse Democracia sem alternativas. Porém, se finalmente há uma alternativa – mesmo que insuficiente para alguns -, então finalmente podemos levá-la a votos e perguntar aos eleitores que caminho desejam trilhar. Apesar do PS ter mostrado mais abertura – mais, não muita – para associar-se à esquerda do que à PAF ao longo da campanha, a verdade é que a questão não foi assumida ou apresentada como uma hipótese real ao eleitorado. Pelo menos de uma forma a que este estivesse na sua maioria ciente da possibilidade. E aqui espero que PS, BE e PCP olhem para o exemplo que Alexis Tsipras.

O PM grego mesmo criticado por todos e com índices de popularidade abaixo dos registados pelo então líder da Nova Democracia optou por avançar para eleições assim que se viu obrigado a alterar a direcção do programa com que tinha sido inicialmente eleito. Ainda hoje a direita europeia, suas ramificações partidárias e suas instituições – nenhuma das quais é composta por membros eleitos pelos europeus – criticam Tsipras por isto e por ter mudado de programa. Esquecem-se que foi obrigado a mudar – BCE estrangulou a Grécia o mais possível até à capitulação – e nem sequer entendem o porquê das eleições antecipadas convocadas por Tsipras. Só assim se percebe que tenham criticado (e gozado) a opção.

O que Alexis Tsipras fez foi não só respeitar a Democracia – pois foi eleito para fazer algo que não conseguiu, sendo obrigado a inverter por completo o seu programa de governo -, como também mostrar a sua superioridade democrática face a uma Europa que se esconde dos eleitores, nem permitindo referendos, ou forçando a repetição dos mesmos até ter (comprar) os resultados que deseja.

Tsipras conseguiu transformar a certidão de óbito que lhe passavam no início do Verão numa renovada força e legitimidade governativa, legitimidade essa que só deixou de ser questionada depois das eleições – daí muitos terem desejado que não se realizassem novas eleições, já que sem as mesmas Tsipras cairia em poucos meses. O grego respeitou a Democracia, não teve medo dos eleitores, e renasceu das cinzas: com menos força que em Janeiro, certo, mas com muito mais força que em Julho. Mesmo que tivesse perdido, sairia de cena como o melhor dos Democratas face a uma Europa liderada por órgãos não eleitos e cada vez mais adepta dos governos de tecnocratas. O “perigoso radical de esquerda” foi quem mais defendeu e promoveu a Democracia na Grécia.

Numa época em que tudo vale para impor uma democracia de uma só alternativa na Europa e depois de anos com um governo eleito graças ao discurso “já chega de austeridade” e que nunca mostrou qualquer respeito pela Constituição, é urgente que alguém também se erga para defender a Democracia portuguesa. E quem o quiser fazer não pode recear eleições, antes desejá-las. É que apesar da política portuguesa ter caído já há algum tempo no patamar da bestialidade futebolística, onde o que interessa é o nosso clube vencer a qualquer custo, merecendo ou não, fazendo seja o que for, atropelando leis ou não, a Democracia não sobreviverá a isto – ao contrário do futebol, dominado por oligarcas e parasitas, na maioria vindos de países não inteiramente democratas, e alimentado por adeptos dementes.

Avançando um governo do PS com o apoio de PCP e BE mas sem quaisquer intenções de proceder a eleições antecipadas que validem o mesmo, então podemos já assumir que este executivo dificilmente chegará ao fim da legislatura, isto se passar do meio da mesma: é que este governo não vai ter um Cavaco a aprovar tudo – só mesmo com Cavaco é que o governo anterior conseguiu chegar ao fim da legislatura apesar do desrespeito pela Constituição e pelo estado em que deixou a saúde, justiça, educação, segurança social. Além disso, este governo não terá direito a qualquer estado de graça – vide o mês de Fevereiro na Grécia – como aquilo que separa PS, BE e PCP é bem mais do que o que separa PSD e CDS (o CDS tem alguma ideia própria?). Pensando ainda em todos os casos, polémicas, incongruências, derrapagens e urgências que ocorrem no prazo de uma legislatura, é quase impossível imaginar como é que este governo chegará ao fim da legislatura, ainda para mais quando passará o tempo a ser bombardeado e acusado de usurpação por parte das hostes do PAF e também pelos PAF escondidos e/ou colocados para dominar a opinião pública – algo tão evidente que até dá pena.

Já entrando em funções um governo de esquerda com o apoio maioritário do parlamento mas que, apesar disso, assuma desde logo que se realizariam eleições num prazo curto – um ano, ano e meio? – então os próximos meses poderiam servir como mera ponte entre situações políticas estáveis. Assumir desde já que haverão eleições dentro de um ano/ano e meio, oferece estabilidade dentro da actual instabilidade, que é incontornável. Chamados a escolher entre um governo de direita e um governo de esquerda, os portugueses então decidirão o que querem, com quem querem e que maiorias são possíveis. Será um tremendo desperdício não aproveitar que finalmente existe uma alternativa para dar a hipótese aos eleitores de a validarem ou chumbarem. Se escolherem mais do mesmo, seja. O voto é soberano.

Em síntese, as eleições antecipadas são inevitáveis, resta saber se o assumimos e definimos um quadro (algo) estável até às mesmas ou se nos deixamos viver num limbo de prazo indeterminado até que de forma inesperada surjam eleições. Isto é particularmente importante para os partidos da esquerda: ou decidem e mostram que não têm medo de eleições antecipadas, como Tsipras fez, ou serão alvos fáceis – interna e externamente – correndo o risco de serem dizimados e condenando o país a ser dominado mais alguns anos por interesses que nada interessam.

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