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11 de Março 1975. “A casca de banana” que tramou Spínola

Rumores de uma “matança da Páscoa” pelo PCP precipitaram avanço de Spínola. Tudo correu mal

No papel o plano seria assim: neutralizar o Regimento de Artilharia Ligeira 1 (RAL1), que dominava os acessos a Lisboa pelo Norte, com um cerco feito por um pequeno grupo de pára-quedistas transportados de helicóptero. Estes seriam apoiados por aviões T-6 armados, tal como um outro grupo de pára-quedistas, transportado para a base número 1 da Portela. Os T-6 fariam ainda voos rasantes intimidatórios sobre o RAL1 garantindo que o acesso norte aLisboa estaria livre para os carros de combate da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, então a avançar sobre Lisboa. Seguir–se-ia a ocupação de infra-estruturas vitais. Há 40 anos este plano (ou parte dele) avançou mas nada correu como previsto.

Portugal vivia a época conturbada do  pós-25 de Abril, período que, tal como na definição de revolução de Charles Tilly, historiador e sociólogo, passou pela “transferência forçada de poder, durante a qual pelo menos dois grupos distintos de contendores têm pretensões incompatíveis ao controlo do Estado”. Desde Setembro de 1974 que um destes grupos estava em ascendência: a “deriva comunista” da revolução portuguesa iniciou-se com o 28 de Setembro, que, à imagem do 11 de Março, teve o cunho das “aventuras impensadas”de António de Spínola, que em ambos os casos facilitaram a disseminação das visões mais extremistas entre a população, silenciando os moderados. “Asociedade portuguesa em 1975 era simplesmente demasiado anárquica, variada, activa e inconstante para que um qualquer centro fosse capaz de lhe impor um rumo coerente e continuado no tempo”, define António José Telo (“História Contemporânea de Portugal, vol. 1”, Presença), que punha nestes avanços a razão para o centro ter caído temporariamente para o radical.

Maioria silenciosa O 28 de Setembro foi o dia marcado por Spínola para a manifestação da “maioria silenciosa”. Omilitar mais associado à direita da revolução, “não podendo ser eleito, queria ser aclamado. OMFAresolveu impedi–lo. Depois de uma dramática contagem de espingardas, na noite de 27 para 28 de Setembro, Spínola desistiu da manifestação” (Rui Ramos, “História dePortugal”, Esfera dos Livros). A organização do movimento spinolista levou, porém, a uma reacção idêntica pelo PCP, que ajudou o MFAno bloqueio dos acessos a Lisboa – muitos latifundiários do Alentejo estavam com Spínola e/ou contra a ideia socialista de reforma agrária. A tentativa de Spínola de se ver aclamado levou à inclinação da revolução à esquerda, que no rescaldo dos eventos fez vingar a ideia de que “tinha defendido a nova situação contra um imaginário ‘regresso ao fascismo’”, diz Rui Ramos.

A ideia do regresso ao fascismo foi amplamente propagada nos meios de comunicação, tendo no entanto uma base, como o facto de muitas das grandes famílias “do capital” terem financiado o 28 de Setembro: os trabalhadores do então Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa detectaram e denunciaram “os apoios dados por aquela instituição de crédito ao Partido do Progresso e ao Partido Liberal”, da direita conservadora e envolvidos na manifestação, “bem como o financiamento de materiais de propaganda e de meios de transporte alugados para a manifestação”, denúncias que surgiam já por cima da acusação de desvios de fundos para contas da famíliaEspírito Santo e movimentos semelhantes noutros bancos (Ricardo Noronha, “Greves e Conflitos Sociais em Portugal no Século XX”, Colibri), que motivavam o medo do regresso do fascismo. Com o fracasso da “maioria silenciosa”, Spínola demite-se, a 30 de Setembro, e Costa Gomes sucede-lhe.

A partir do final de Setembro, o PCP  ganha um novo ascendente sobre os acontecimentos, obrigando os partidos do centro –PSe PPD – a conterem-se. OPSaproxima-se de Costa Gomes, o PPDescolhe como lema do primeiro congresso a “Solução Socialista” e apaga-se ainda mais com a perda temporária de Sá Carneiro em 1975. Ambos ficam condenados a assistir à ofensiva da via mais socializante, agora reforçada com um maior domínio dos movimentos sindicais e das autarquias. Crescem então as acusações de “sabotagem económica” por parte das empresas, que precedem o aumento da intervenção estatal nas mesmas a partir de Novembro.

Em Janeiro de 1975, Mário Soares vem a público denunciar “a escalada do domínio que o PCPdeseja exercer sobre a sociedade portuguesa” e, gradualmente, os moderados vão recuperando o espaço perdido com o 28 de Setembro – algo visível por exemplo no facto de o Plano Melo Antunes não prever nacionalizações. Mas depois veio Março.

Terror e 11 de Março Em Janeiro de 1975 nasceu em Espanha o Exército deLibertação de Portugal (ELP), “declarando-se disposto a combater a ‘ditadura comunista’ em Portugal”, organização cujo sector de informações estava a cargo de Barbieri Cardoso – ex-PIDE, envolvido no assassinato de Humberto Delgado. “O ELP será infiltrado muito cedo por elementos ligados ao MFA”, que tomam “conhecimento [a 19 de Fevereiro] de que havia planos para vagas movimentações de repor Spínola no poder”, que viriam a verificar-se “muito semelhantes ao executado no 11 de Março”, conta António José Telo. Spínola já tinha inclusive preparado o discurso para o pós-golpe –“Fui de novo chamado a assumir as responsabilidades da presidência…”. Tudo se terá precipitado aquando da explosão dos rumores sobre a “matança daPáscoa”, uma lista que teria centenas de nomes de civis e militares que o PCPse preparava para abater, incluindo Spínola. Nem este nem os seus apoiantes duvidaram da existência da lista e procuraram a antecipação.Porém, “do lado spinolista tudo era feito na forma descentralizada e amadora que era já habitual”, diz o mesmo historiador.

Em entrevista à “Newsweek”, já em Novembro de 1975, Spínola conta que  foi o receio da “matança da Páscoa” que o levou a refugiar-se em Tancos na madrugada de 11 de Março. Ali, acompanhado por militares da sua confiança, foi-lhe garantido que estava em marcha um plano para dar a volta à situação. Era já demasiado tarde para recuar, salienta. Oplano terá sido elaborado durante a madrugada, partindo de ideias já existentes e (também)a pressa terá determinado o fracasso:os T-6 saíram deTancos e atacaram o RAL1 – quando deviam ameaçar apenas – e os pára-quedistas tentaram cercar o mesmo mas no RAL1 já havia quem estivesse de sobreaviso. Depois as unidades com que Spínola contava para apoio adicional não partem para a rua, com Salgueiro Maia a recusar a aventura, tal como Jaime Neves.

O desfecho da tentativa de golpe é, no mínimo, caricato:a única acção é o ataque ao RAL1, onde os militares acabam aos abraços com os pára-quedistas que os cercavam, uns e outros invocando obedecer a ordens do mesmo Presidente, tudo isto com câmaras a filmar. Spínola foge para Badajoz a meio da tarde. Menos caricata foi a nova volta que o país dá pós-11 deMarço, com novo ocaso dos moderados e recrudescimento do PCP, tal como em Setembro. Este desfecho, assim como o pré-aviso existente sobre o golpe spinolista, levanta a questão dos rumores da “matança da Páscoa”, já que estes não terão sido mais que uma forma de precipitar Spínola para novo golpe, fazendo-o escorregar na casca de banana posta à sua frente. O11 de Março acaba por anular os ganhos recentes das vias moderadas e dias depois Cunhal ameaça Soares – ou te juntas a nós ou és eliminado “como a direita” – e o centro percebe que o tempo é de ir com a corrente. As nacionalizações seguem-se.

Instantes

in: Jornal i, 11 Março 2015

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