Saltar para o conteúdo

Grande Guerra. O início do longo suicídio de 31 anos da Europa

Entre 1914 e 1945 a Europa perdeu o domínio político, económico e cultural do mundo depois de duas guerras fratricidas. Nestas páginas olhamos para as origens do primeiro destes conflitos à boleia de Eric Hobsbawm, em quem nos baseamos para avançar com uma síntese do crescendo de animosidade na Europa até à declaração de guerra da Áustria à Sérvia, faz hoje cem anos

Cover - Grande Guerra

“Pessoalmente não acredito que vá haver uma guerra geral.” Victor Adler, chefe da social-democracia austríaca, pronunciou estas palavras um dia depois da Áustria-Hungria declarar guerra à Sérvia, a 28 de Julho de 1914, há precisamente cem anos. A data ficou como o dia em que a Grande Guerra começou. Mas na altura ninguém fazia ideia do cenário que se estava a desenhar nem tão-pouco dos contornos que iria tomar. Ou antes, quase ninguém. Ivan Bloch, empresário que dedicou parte da vida ao estudo da indústria militar, era uma excepção: em 1898, numa obra de seis volumes, previu que a guerra que se seguisse seria marcada por conflitos intermináveis, de trincheiras, e intoleráveis custos económicos e humanos. Mesmo antes, na década de 1880, Nietzsche via na militarização em curso no velho continente o sinal de que vinha aí uma guerra que “diria sim ao barbarismo do animal selvagem que está dentro de nós”.

Em 1914 a última guerra entre todas as potências europeias estava à distância a que hoje estamos do início da Grande Guerra. Era preciso recuar a 1815 e às guerras napoleónicas para encontrar um conflito de larga escala na Europa, e até 1871 para encontrar uma guerra entre potências europeias – a franco-prussiana, circunscrita a estes actores. Desde então, as grandes potências tinham passado a privilegiar quase exclusivamente as vítimas no mundo não-europeu, mais fracas e menos propícias a arrastar aliados para conflitos de larga escala. Mas isso não queria dizer que a guerra não pairasse como uma nuvem sobre a Europa, sendo antes uma bomba muitas vezes desarmada à última hora. Talvez por isso, o olhar europeu face ao crescendo de animosidade no interior do continente era influenciado pela ideia de que seria sempre possível evitar uma guerra generalizada: Adler a 29 de Julho achava isso mesmo, tal como Guilherme II, imperador alemão, que até ao último segundo quis manter o conflito minimamente circunscrito.

Eram dois os barris de pólvora na Europa de então: os Balcãs e o Império Otomano, já em vias de desintegração. Nestas regiões os povos batiam-se pela independência e a cada crise surgia o risco de contágio do conflito às grandes potências. Acabaria por acontecer em 1914, depois da Áustria aproveitar o atentado a Francisco Fernando para castigar a Sérvia – isto quando, à época, o que não faltavam eram assassinatos políticos.

Explicar as origens da guerra, porém, continua a ser um exercício polémico. “É provável que, para esclarecer esta questão, mais tinta haja corrido, mais árvores tenham sido sacrificadas para fabricar papel, mais dactilógrafos tenham estado atarefados, do que para esclarecer qualquer outra na história”, diz-nos Eric Hobsbawm, em “A Era do Império”, livro a que recorremos para elaborar esta (curtíssima) síntese das razões para o conflito. Explicar a origem da guerra, diz-nos, é mergulhar “em águas profundas e turbulentas”, existindo milhares de livros sobre o tópico, pelo que diferentes versões não faltarão. É que, ao contrário da Segunda Guerra Mundial, em que a postura de Hitler não deixou grande margem de discussão, em 1914 a equação é mais complicada e ramificada.

Bibliografia recomendada:

Inovações e armamento

Uma das ramificações encontra-se na corrida ao armamento. Desde meados do século xix a tecnologia militar registava fortes avanços que todos os governos desejavam entusiasticamente. Afinal vivíamos num período em que as guerras eram contingências normais da política e em que os ministros da Guerra ainda não eram ministros da Defesa. Cada império procurava superar o outro em armamento ou, no mínimo, não ficar atrás, numa corrida que acelerou no último quartel do século xix. Os principais avanços eram na artilharia e nos navios de guerra.

A corrida às armas fez nascer um novo tipo de indústria, totalmente dependente do Estado, já que só os governos consumiam armamento em larga escala. E este mercado não era normal: os bens não eram produzidos em função das necessidades mas antes da corrida pela superioridade. O complexo industrial-militar era financiado pelos estados que protegiam estas indústrias das incertezas da concorrência. Não fosse isto suficiente, há ainda que contar com a força do medo, habilmente manejado pelos fabricantes: quando uma empresa alemã conseguiu que o “Le Figaro” publicasse uma notícia – falsa – de que os franceses iam duplicar o seu arsenal de metralhadoras, os alemães decidiram encomendar mais 40 milhões de marcos em novas metralhadoras. Apesar da manipulação alimentada pelo medo, não é possível explicar as origens do conflito por uma conspiração de fabricantes, embora a aceleração da compra de materiais bélicos tenha tornado a situação ainda mais explosiva.

GGuera1

A emergência de blocos

A Europa contava então com governos que não eram pacíficos nem pacifistas, ainda que também não estivessem inclinados para hostilizar outros impérios, ao contrário do que ocorreu em parte do século xix. Até as crises nas regiões ultramarinas com potencial de contágio acabavam normalmente por ser reguladas pacificamente. Mas mesmo sem vontade de hostilizar, o imperialismo não deixava de ser característico de todos os grandes estados, numa coincidência de objectivos que foi metendo a ideia de uma guerra global na cabeça de todos, em especial com o aparecimento de dois blocos cada vez mais antagónicos. Depois chegou o ponto em que tudo passou a resumir-se ao timing: ataco agora ou sou atacado mais tarde? A paz acabou por ser posta de lado por todos no Verão de 1914, mas até a Europa chegar a este ponto, muita água correu nas décadas anteriores.

A existência de blocos opostos e consolidados era uma novidade na Europa, em especial porque a Inglaterra nunca se tinha associado de forma tão vincada a outro império. Mas a unificação do império germânico, consolidada depois da vitória na guerra franco-prussiana, que puxou a região da Alsácia-Lorena para a Alemanha pós-1871, desencadeou um processo de alianças e contra-alianças no coração europeu: a Alemanha queria proteger-se dos derrotados franceses que, por seu turno, procuraram alianças para contrariar o peso crescente da nova Alemanha unificada.

À época, porém, era difícil perceber quem seriam os potenciais aliados ou inimigos, além do que era claro, como a hostilidade entre franceses e alemães. Também a associação entre a Alemanha e a Áustria-Hungria era fácil de prever, já que a desintegração da segunda levaria ao colapso do sistema da Europa Central e Oriental. Foi assim que surgiu a Tríplice Aliança, de 1882, unindo Alemanha, Áustria-Hungria e Itália – que em 1915 mudaria de lado.

Na génese desta aliança estava também a situação dos Balcãs, agravada em 1878, quando a Áustria-Hungria ocupou a Bósnia, contrariando as pretensões russas, de acesso ao Mediterrâneo através daquela península. A situação acabou por forçar a Alemanha a fazer uma escolha: Viena ou Sampetersburgo? Assim que os alemães escolheram Viena, Paris entendeu-se com a Rússia, em 1891. Os blocos estavam criados.

A simples existência de dois blocos opostos, porém, não tornava inevitável a eclosão de um conflito de larga escala, até porque as questões a separar a França da Alemanha não eram críticas para a Rússia ou Áustria-Hungria, tal como os assuntos que separavam estes não eram fulcrais para franceses ou alemães. Mas a evolução dos enquadramentos internos e externos mudou tudo.

A posição britânica

Três factores vieram desequilibrar esta já frágil situação. A instabilidade interna que eclodiu em alguns países, o crescente planeamento militar e a integração de uma quinta potência no jogo dos blocos: a adesão da Grã-Bretanha aos antigermânicos através da aliança “contranatura” com a França foi formalizada entre 1903 e 1907, tempo que Londres levou a fechar um acordo com franceses (1904) e a forjar a aliança anglo-russa (1907), dando assim origem à Tríplice Entente.

Para perceber a guerra, é também preciso entender esta adesão britânica ao bloco antigermânico, isto quando Londres e Paris foram adversários em quase todos os conflitos europeus desde o final do século xvii, partilhando ainda no arranque do século xx ambições opostas – do canal do Suez, ao Sudão -, em que os ganhos de uma vinham das perdas da outra. A associação anglo-francesa era no mínimo improvável, tal como a aproximação entre britânicos e russos, já que os últimos queriam avançar em direcção à Índia e tinham estado em lados opostos na única guerra europeia em que os britânicos participaram no século xix, a da Crimeia. Mas o improvável aconteceu.

A Grã-Bretanha sempre apostou em manter uma independência total face aos poderes europeus, evitando qualquer aliança para melhor manter o equilíbrio de poderes no continente, equilíbrio que resultava de os britânicos serem a maior de todas as potências, o que se traduzia na sua poderosa e incontestável marinha. Mas aos poucos o palco imperial foi crescendo, ajudado pela desagregação do Império Otomano e pelo aparecimento dos EUA e do Japão como actores de escala global.

A maior preocupação britânica, porém, não eram os EUA, o Japão ou mesmo o poderio militar russo – menos temido desde a derrota com os japoneses em 1904/05. Do ponto de vista de Londres, a maior ameaça estava bem mais próxima e nem era exclusivamente militar, mas sim económica. Habituada a ser a única potência com objectivos mundiais, assentes no domínio dos mares num planeamento que dependia muito da manutenção da tranquilidade europeia, os britânicos foram sendo confrontados com a emergência de novas economias industriais à escala mundial, o que aumentou a rivalidade entre estados. O mundo económico que desde meados do século xix estava totalmente ao dispor dos britânicos deixou de estar: as ilhas deixaram de ser a “oficina do mundo”, culpa do crescimento industrial da Alemanha unificada. Mas não era apenas a Alemanha que estava a crescer, eram também outros estados, num crescendo de concorrência entre países que acabou por forçar uma dependência maior entre decisões políticas e objectivos económicos – passou a ser o poder económico a definir se um país era ou não uma grande potência.

A crescente força industrial alemã estava assim a provocar alterações no equilíbrio de forças políticas e militares na Europa, com a procura dos maiores recursos mundiais em zonas como o Próximo e o Médio Oriente, assim como a aposta alemã no Império Otomano, a pôr em causa a economia inglesa. E se os receios em Londres já eram grandes perante a perspectiva de perder o domínio económico, maiores se tornaram quando Guilherme II veio a público reclamar um “lugar ao sol” para o império alemão.

Depois da explosão industrial, faltava à Alemanha uma força militar que rivalizasse com os restantes impérios, especialmente nos mares, “o” domínio inglês. Foi a partir de 1897 que a Alemanha apostou seriamente em criar uma grande esquadra, já que um poder global exigia uma marinha global. Mas se para os alemães este passo era natural, e não implicava um plano de guerra contra Londres, para os britânicos a leitura foi a oposta. Culpa da geografia.

Ao contrário de outras esquadras que os britânicos pudessem ter de enfrentar, as bases da marinha alemã situavam-se todas no mar do Norte, olhos nos olhos com as ilhas britânicas, portanto. Isto não só criou um novo foco de tensão com os ingleses, como punha em risco o controlo naval de vastas áreas, já que a simples existência de uma marinha forte à porta da casa obrigava a amarrar aos portos ingleses mais navios que o normal. Para Londres isto era crítico, já que o império dependia totalmente das rotas marítimas. “O que, para a Alemanha, era um símbolo do seu status internacional e de indefinidas ambições globais, significava para o império britânico questão de vida ou de morte”, resume Hobsbawm.

gguerra2

E de repente, a guerra

Foi neste enquadramento que surgiu uma nova desestabilização da situação internacional, culpa de uma nova vaga de revoluções, como a primeira revolução russa (1905), que, tendo deixado os franceses temporariamente sem o seu maior aliado, levou os alemães a aproveitar para avançar com as pretensões sobre Marrocos – que só foram repelidas graças ao apoio então oferecido pelos britânicos aos franceses. Três anos mais tarde foi a vez de eclodir a revolução turca, que pôs em sério risco o frágil equilíbrio no Próximo Oriente, até porque a Áustria aproveitou para anexar formalmente a Bósnia – então sob soberania turca.

Seguiu-se nova crise em Marrocos, em 1911, quando, em resposta à entrada dos exércitos franceses naquele país para o tornar um protectorado, os alemães enviaram um navio de guerra para Agadir, não só para proteger os seus interesses económicos como para forçar alguma cedência francesa. Donos de um importante porto em Gibraltar, os ingleses voltaram a pôr-se do lado dos franceses enviando uma frota para Marrocos. Berlim acabou por recuar mas a guerra esteve à distância de uma pequena gota de água e todos o perceberam.

As situações de tensão, porém, continuaram a aumentar, muito à conta da desagregação do império turco e da luta pelos seus retalhos. A Itália ainda em 1911 ocupou a Líbia e, no ano seguinte, a Sérvia, a Bulgária e a Grécia avançaram para expulsar os turcos dos Balcãs. O imobilismo foi a resposta das potências, já que a Itália continuava a hesitar entre os dois blocos europeus e ambos a queriam. A falta de reacção por parte dos blocos levou à eclosão de duas guerras em outros tantos anos naquela região (1912-13), a primeira que levou à derrota dos otomanos e a segunda à da Bulgária. A situação na península ficou longe de resolvida e a crise seguinte surgiria a 28 de Junho de 1914: o assassinato do herdeiro austríaco.

Além do caos externo, também as situações internas de alguns países tiveram algum peso na criação das condições para um conflito de larga escala. Depois de um século xix muito marcado por revoluções, algumas sociedades iam avançando aos solavancos para a democratização e outras ainda iam tentando contrariar esse avanço, ainda com mais solavancos. Para alguns países, a existência de um inimigo exterior que permitisse uma retórica unificadora de massas era uma dádiva. Não seria o caso de Inglaterra ou França – ainda que estes últimos tenham eleito em 1913 um presidente que exigia vingança contra a Alemanha -, mas era uma realidade parcial em Itália e na Alemanha. Mais que nestes, o cenário ocorreu na Rússia, que depois da derrota com o Japão e da revolução de 1905 precisava do nacionalismo para se refazer. Mas quem mais precisava destes jogos era a Áustria-Hungria, cada vez mais pressionada pelas várias nacionalidades no seu interior, que desejavam para o império um declínio idêntico ao dos otomanos. Os eslavos do Sul eram a maior destas ameaças, até porque uma parte já conseguira um estado independente, a Sérvia.

Gavrilo Princip assassinou o herdeiro austríaco quando este visitava Sarajevo a 28 de Junho de 2014. Um mês depois, faz hoje cem anos, a Áustria declarou guerra à Sérvia e a primeira peça do dominó caiu. Seguiram-se todas as outras: os alemães desta vez decidiram não recuar e ofereceram apoio total aos austríacos, levando a Rússia a avançar para a mobilização geral a 29 de Julho. Uma semana depois já a Europa estava quase toda em guerra, ou, como sintetizou o “The Onion”, jornal satírico,”a Áustria declarou guerra à Sérvia, que declarou guerra à Alemanha, que declarou guerra à França que declarou guerra à Turquia que declarou guerra à Rússia que declarou guerra à Bulgária que declarou guerra à Grã-Bretanha.” A Europa assinava a sua nota de suicídio.

in: Jornal i, 28 Julho 2014

Comentar

Please log in using one of these methods to post your comment:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

%d bloggers gostam disto: