Eleições 1975. O início do combate entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade eleitoral

As eleições de 1975 clarificaram o peso real dos diferentes quadrantes ideológicos no país. Os resultados deram coragem aos partidos para avançar para o leme da revolução mas foram só o início de um processo.

Eleições constituinte

As eleições para a Assembleia Constituinte a 25 Abril de 1975, faz hoje 40 anos, ocorreram num momento crítico do processo revolucionário, em plena “segunda vaga” da deriva comunista, agora propiciada pelo golpe spinolista de 11 de Março. Olado mais visível do recrudescimento dos ímpetos mais à esquerda foi o avanço das nacionalizações pós-11 de Março, quando até então tais medidas eram defendidas para um momento posterior ao acto eleitoral. A chama da ala mais radical do Movimento das Forças Armadas (MFA) e do PCP, a apagar-se desde o início do ano, viu no golpe de Spínola a oportunidade de se reacender, numa posição que as restantes forças políticas e civis só com legitimidade eleitoral ganhariam coragem para travar.

A ideia de um acto eleitoral em 1975 e a perspectiva de perda de legitimidade do lado dos militares, que iam liderando o processo revolucionário dentro do possível, eram um tema em discussão no seio do MFA desde 1974. Em causa o facto de o movimento não participar nas eleições, o que significaria que ia perder a legitimidade revolucionária, substituída pela legitimidade eleitoral. “Se era aceite a legitimidade do voto, então qual a legitimidade dos militares para continuarem a exercer o poder?”, pergunta o historiador António José Telo (“História Contemporânea de Portugal, vol. 1”, da Presença). Aideia de avançar para a institucionalização do MFA e tornar “irreversíveis as conquistas da Revolução” foi reunindo cada vez mais adeptos, especialmente desde o 28 de Setembro – dia da “maioria silenciosa”.

Também Álvaro Cunhal era a favor da institucionalização do MFA. Em Outubro de 1974 defendia uma participação do movimento na vida política e no final de Novembro o líder comunista dizia:“Pela nossa parte defendemos a unidade das forças democráticas e da aliança povo-Forças Armadas para além das eleições, qualquer que seja o resultado.”Cunhal queria definir “antes das eleições o entendimento das forças democráticas quanto à política a seguir depois das eleições”, contando por isso com o MFA.

Havia uma outra questão subjacente à vontade de institucionalizar o Movimento das Forças Armadas e esta prendia-se com as dúvidas sobre a capacidade do povo de votar em consciência, ao fim de 48 anos de ditadura. “Toda a gente sabe que a vontade do povo não vai ser expressa nas eleições mas dispensá-las é impor a ditadura militar”, discute-se na assembleia do MFA a 4 de Janeiro de 1975, segundo Rui Ramos (“História de Portugal”, Esfera dos Livros). Temia-se que o fim do MFA fosse o fim de Abril.

É já em Fevereiro de 1975 que o MFA debate a institucionalização por duas vezes:numa primeira ocasião a proposta para a criação de um Conselho da Revolução (CR) não singra. Depois, dia 17, é apresentada a proposta de um pacto entre MFA e os partidos, que estará em discussão até ao 11 deMarço. O chumbo inicial à criação de um CR é um dos sinais que no início de 1975 mostram alguma recuperação de força dos mais moderados. Mas houve outros, igualmente emblemáticos ou mais, como a aprovação do programa Melo Antunes sem contemplar nacionalizações. Além deste programa, e mais preocupante para os militares mais radicais, foram as eleições para os Conselhos das Armas do Exército:decorrendo por voto secreto, deram vitórias aos militares conotados com Spínola e a derrota dos mais extremistas – incluindo Otelo. Oarrefecimento da deriva comunista ia ficando evidente e a gestão do dossiê da unicidade sindical pelo MFA não ajudou.

Unicidade Sindical Em causa estava a ideia de existir uma central sindical única, sem concorrência. Otema dividia socialistas e comunistas e a discussão ganha contornos públicos no início de 1975. Carlos Carvalhas, então secretário de Estado do Trabalho, faz a defesa da unicidade e Salgado Zenha, então ministro da Justiça, chama à mesma um atentado à liberdade. A discussão avança para a rua:“A polémica está lançada, promovendo a constituição de diferentes grupos que se mobilizam e batem a favor ou contra a aprovação da nova lei”, diz Maria Inácia Rezola (“25 de Abril – Mitos de uma revolução”, Esfera dosLivros). É na sequência desta batalha que Cunhal começa a encostar oPS às cordas.

É fácil perceber as divisões que a unicidade provoca:para o PCP, uma central única e obrigatória era a garantia de que controlaria o movimento sindical. Já PS e PPD só com liberdade de filiação sindical poderiam ambicionar ter ramificações no mundo laboral. “Estava em jogo uma das principais bases de poder futuro para os grandes partidos. Era igualmente um teste para a democracia. Se a ideia de central única prevalecesse, como veio a suceder, eram previsíveis outros passos para eliminar a pluralidade”, diz por seu turno António José Telo.

Caberá ao PS assumir este combate:“Resistiremos como resistimos ao fascismo”, afirmam Manuel Alegre e Jaime Gama. Mas a resistência foi sol de pouca dura: a duas manifestações opostas – uma, do PCP, a favor da unicidade;outra, contra, do PS–, segue-se uma ameaça de Cunhal a Soares. A 17 de Janeiro os dois líderes têm uma troca dura de palavras e Cunhal faz-se valer da força do executivo, já que a maioria dos ministros era pró-unicidade. “Se não temos sabido acompanhar o movimento (…) teríamos sido inevitavelmente esmagados. Não tenho hoje a menor dúvida sobre isso”, explicou o histórico socialista em 1996. Com o abrandar de críticas do PS à unicidade, cabe ao PPD pegar na bandeira: “Há pois que gritar sem demora alerta quando já nos impõem sindicatos únicos (…). A situação é hoje mais preocupante que nunca depois do 25 de Abril”, diz Sá Carneiro, num discurso emJaneiro. Em Fevereiro, porém, o líder do PPD adoece e é obrigado a um período de convalescença fora do país e o partido perde (grande) parte da força.

A unicidade sindical é aprovada a 20 de Janeiro de 1975, com os votos contra de PSe PPD. Este avanço da unicidade teve o apoio do MFA o que acaba por levar a uma moção de desconfiança à Comissão Coordenadora do movimento por parte da Escola Prática de Cavalaria.

MFA-Partidos A vitória da unicidade foi uma excepção à regra no início de 1975, quando as alas mais radicais estavam a sofrer cada vez mais resistência.  Para sobreviver, esta via radical precisava de um estímulo. E este apareceu quando mais era necessário:o 11 de Março. O golpe spínolista, falhado, criou o cenário perfeito: “O fracasso comprometeu todos os ‘moderados’. Nessa noite a revolução deu o ‘salto’”, sintetiza Rui Ramos. O timing do golpe e a ajuda que este deu ao relançamento da deriva comunista não foi por acaso:“Os acontecimentos desse dia nasceram de uma provocação habilmente montada pelo PCP em colaboração com os soviéticos”, acusou Spínola. Alguns partidos estavam conscientes do facto mas o destino de quem denunciou a “casca de banana” que o PCP atirou a Spínola recomendou silêncio total sobre o caso:o MRPP, por exemplo,foi ilegalizado por ter denunciado publicamente o caso. O 11 de Março trouxe assim novo avanço dos mais extremistas, que se apresentavam como os únicos capazes de defender o país do “regresso do fascismo”.

Ainda na noite de 11 de Março a assembleia do MFA reúne-se e decide pela institucionalização do MFA com a criação do CR, aprovando ainda uma vaga de nacionalizações, a reforma agrária e a dissolução dos Conselhos de Armas. Com o súbito reforço do peso das alas mais radicais, as negociações para o pacto entre MFA e partidos dá também um enorme salto, pois fica difícil recusar quaisquer exigências do movimento, não só porque alguns militares querem adiar eleições mas também porque neste período três partidos foram ilegalizados e houve uma vaga de prisões de envolvidos e não envolvidos no 11 de Março. Neste cenário, PSe PPD assumem posições defensivas e dão prioridade à espera pelo acto eleitoral. Opacto entre MFA e alguns partidos é assinado no início de Abril, incluindo entre outros termos a exigência aos mesmos de não pedirem uma redefinição do governo que responda aos resultados eleitorais e a aceitação dos militares como órgão de soberania por pelo menos cinco anos. Aceitar o pacto terá sido o preço pago pelos partidos para garantir que as eleições se realizavam de facto.

É neste contexto que surge o IV governo provisório, agora remodelado em função da nova dinâmica da esquerda comunista, já que “reflecte no essencial o maior controlo do MFA e do sector gonçalvista sobre o executivo”. OPCPpassa a controlar cinco ministros enquanto PS e PPD em conjunto ficam apenas com quatro. “Opeso dos vencedores do 11 de Março é esmagador no novo gabinete”, sintetiza António José Telo. OPS acaba por aceitar este novo governo isto porque apesar de considerar que o novo executivo não corresponde “ao peso político real dos diferentes partidos que o constituem”, a ausência do PS do governo “prestar-se-ia a especulações nocivas para a jovem democracia portuguesa”, lê-se num comunicado então divulgado pelo partido.

eleições e legitimidade  É neste contexto que Portugal chega ao acto eleitoral de Abril de 1975. Já com a aceitação de que o MFA continuaria ao leme do país – que serviu para acalmar os militares que defendiam o adiar do sufrágio –, as eleições para a Constituinte trazem a luz sobre a legitimidade real dos partidos, sobretudo do PS, que reúne 37,9% dos votos, seguido pelo PPD (26,4%) e só então do PCP(12,5%).

Já com um esboço de Constituição predefinido através dopacto MFA-partidos, este “acto eleitoral deveria ter sido pouco mais do que uma sondagem de opinião. Mas o sistema de sufrágio universal, directo e secreto, com proporcionalidade, fez das eleições um acontecimento fundador”, explica Rui Ramos. Com a participação de 91,7% dos recenseados, os eleitores concentraram as escolhas em cinco partidos que ganham peso oficial pela primeira vez. A derrota dos comunistas e da extrema-esquerda fica evidente e “as eleições foram um golpe mortal” nestes, dissipando as dúvidas sobre “a representatividade real do PCP”, sintetiza Telo. Apesar disso, a legitimidade revolucionária persiste acima da eleitoral mas ambas ficam em rota de colisão.

No rescaldo dos resultados, as alas mais à esquerda recordam que o sufrágio não visava a constituição de um governo, recuperando também a ideia de que o povo não estava preparado para votar. Suportando-se na força do MFA, na distribuição de poder do IVgoverno provisório e no domínio das maiores empresas, a estratégia agora era prosseguir com o rumo definido, mesmo que os resultados eleitorais tenham tornado evidente o fosso entre o povo e as vontades desta esquerda mais extremada. “Os grupos comunistas e aparentados, vendo perdidas as esperanças de uma vitória eleitoralista esforçaram-se em sentido contrário” ao dos vencedores, “que tentaram convencer os militares a entregar-lhes o essencial da governação pública”, refere já Oliveira Marques (“História de Portugal”, vol. III, Presença).

Com 38% de votos nas eleições de Abril, o PSinaugura uma nova fase no processo revolucionário onde, em conjunto com o “Grupo dos 9” – militares moderados do MFA–, será uma das forças a pegar nas rédeas do centro. OPS era “um partido de mudança, de corte com o passado, claramente de esquerda, com um projecto, um programa e uma linguagem, um discurso enfim, claramente situados à esquerda, mas que não provocavam tantos temores como o PCP. Ea população, obviamente (…)refugiou-se em grande parte num projecto de transformação que não fosse ameaçador, digamos assim, dos seus valores sociais”, interpretou Melo Antunes sobre os resultados de 1975.
Ainda que inicialmente ninguém tenha apresentado exigências na sequência das eleições, pouco demoraria para que PS, tal como o PPD, aumentassem a contestação ao caminho que o processo revolucionário tinha e continuava a seguir.

O choque entre legitimidade revolucionária e a legitimidade democrática demorou apenas uma semana a eclodir:as celebrações do 1 de Maio de 1975 ficam marcadas por episódios de violência física e verbal entre filiados do PS e do PCP e em Julho PS e PPD abandonam o governo, assumindo-se como oposição ao mesmo. ParaOliveiraMarques, “os meses que se seguiram foram de agitação por todo o país, verificando-se, por um lado, uma intensa campanha anticomunista à escala nacional com ataques violentos e sucessivos a sedes dos partidos de extrema-esquerda e, pelo outro, uma escalada do PCPe aliados, com acusações sistemáticas de reaccionarismo fascista a todos os outros grupos”. Um combate pela legitimidade e pelo destino da revolução que só a 25 de Novembro terminaria.

in: Jornal i, 25 Abril 2015

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