São três as questões que devemos ter em mente quando falamos de privatizações, questões que nos dariam muito a ganhar se fossem esclarecidas por qualquer interveniente directo ou indirecto na matéria – de governantes a oposição, de colunistas a trabalhadores ou sindicatos. E até quando discutimos o tema com os mais próximos. A primeira: que tipo de empresas não devem estar na esfera do Estado?; a segunda: que tipo de empresas devem estar na esfera do Estado?; a terceira: quando e em que condições é que devem ser vendidas as empresas que não devem ser dos contribuintes? Ter estas respostas em mente facilita o debate de casos específicos de privatizações.
Os diferentes governos do país têm vendido património dos contribuintes primordialmente para tapar buracos orçamentais criados por via dos défices e correspondente endividamento público. Mais recentemente também por (ou disfarçado de) convicção ideológica. Ao fim de vários anos de privatizações, e já quase sem nada na lista de bens potencialmente privatizáveis, Portugal vai desbaratar todo o seu tecido empresarial público sem que por uma vez tenha havido uma discussão profunda e competente sobre o que deve ou não deve estar nas mãos dos contribuintes e sobre o quando e como se devem vender empresas públicas. E quando falo no “quando”, não falo apenas de discutir as vendas ao desbarato “tapa-buracos” do Estado mas também de vertentes como o timing da entrega de empresas públicas a privados, pois muitas vezes são vendidas quando já são monopólios – leia-se com força, dimensão e capacidade para destruir qualquer potencial concorrência ou atrasá-la umas boas dezenas de anos.
Dito isto, o meu ‘disclosure’: empresas estratégicas – em alguns casos apenas parte delas – não devem fugir da esfera pública; Nunca o Estado deve vender uma empresa só porque está com pressa ou porque a empresa caiu numa má situação financeira; Nem nunca deve vender gigantes monopolistas enquanto tais. Ou parte, reparte e assegura que há distribuição concorrencial no setor em causa – no mínimo um “level playing field”, como diriam os ligados à Concorrência -, ou não vende.
“Estratégicas”:
No caso da água, tanto em termos grossistas como retalhistas, é um sector que jamais deve ser gerido por alguém que dê primazia ao lucro;
Nos casos da electricidade e gás, o Estado deve ser detentor de toda a “parte grossista”, funcionando como:
- 1) fornecedor único das empresas privadas que desejem explorar o mercado retalhista, assegurando que estas cumprem normas de fins sociais – ou, em alternativa, evitar o intermediário e lançar um retalhista com fins puramente sociais;
- 2) braço armado do regulador da concorrência, admitindo preços grossistas diferenciados para
- 1) penalizar práticas anticoncorrenciais – p. exe. concertação; dumping; abuso posição dominante…
- Para usar como sanção a acrescentar às eventualmente impostas por reguladores e/ou tribunais e não para substitui-las;
- 2) mecanismo limitador de quota de mercados, i.e., preços grossistas mais altos para a empresa com mais de xis% quota…
- para evitar posição dominante; para prevenir duopólios e mesmo duopólios+1 – leia-se, quando dois players dividem a maior fatia do mercado e deixam um terceiro sobreviver para evitar “remédios”;
- 1) penalizar práticas anticoncorrenciais – p. exe. concertação; dumping; abuso posição dominante…
Ainda na electricidade, a exploração das energias renováveis devia caber ao Estado e em forte parceria com sector académico nacional e internacional. Dado o elevado custo das renováveis – hoje pago pelos contribuintes a empresas privadas – seria preferível direccionar as verbas para o sector académico, investindo e potenciando a investigação e o próprio ensino universitário, criando-se um ciclo positivo, com o reforço das capacidades de investigação. Além disso, com mais controlo sobre as verbas deste ‘investimento de alta intensidade’ que são as renováveis – muitos milhares de milhões durante muitos anos -, minimizavam-se os abusos.
Sem me alongar muito mais, diria que as empresas estratégicas são aquelas de sectores a que todos os residentes do país são ‘obrigados’ a usufruir. Precisamente por serem obrigatórias para todos os cidadãos, o seu controlo deve ser de todos os cidadãos – seja como grossista-regulador, seja como retalhista e grossista. Estas posições estatais, além de servirem para evitar que eventuais posições dominantes de privados levem a abusos dos cidadãos através do encarecimento dos preços de bens obrigatórios, podem e devem servir também como amortecedores sociais sempre e quando se tornar necessário atrasar um choque económico ou financeiro sobre os cidadãos – chegue este por via de eventuais oscilações dos mercados e seus impactos e réplicas ou por quaisquer outros impactos imprevisíveis.
Visando detalhar melhor o ponto anterior, um exemplo concreto: o aumento do IVA para 23% nos bens essenciais quando Portugal atravessou a maior crise de desemprego e o maior esmagamento de poder de compra da sua história recente foi um acto criminoso. Estes bens são para ser utilizados de forma totalmente oposta e não para servir de ferramenta ao serviço da dívida e do autoritarismo austeritário. Porque a ser, atacam tudo e todos, sem hipóteses de defesa.
[Post aberto a revisões, acrescentos e demais alterações posteriores]
Quanto ao quando, fica para outra ocasião.
27 dezembro 2015