3 Março 1910. João de Freitas, a crise, a dívida e a austeridade – e as semelhanças com Portugal do XXI

João de Freitas escreve no nº4 da revista Alma Nacional sobre os problemas financeiros de Portugal, abordando os mercados, juros, renegociação da dívida pública, despesismo, educação ou os salários na função pública, defendendo porém que a austeridade e as receitas fiscais devem ter limites.

Rep e fin - topo

Com o título “Republica e Finanças”, o texto conta-nos que a crise foi o “resultado inevitavel dos quarenta annos de orgia governativa”, onde “sucessivos deficits das receitas em relação ás despezas do Estado, loucamente avolumadas, foram systematicamente cobertos por meio de ruinosos emprestimos internos e externos”.

Este é apenas um dos pontos de contacto entre a crise descrita no texto e a crise actual e de como os erros [maus investimentos, orgias publico-privadas, maus governos, caciquismos e outros ismos, excesso de dívida, etc.] se repetem.

Alguns excertos, a começar pela citação anterior, sintetizando as origens:

“(…) A administração financeira da monarchia, imprevidente e perdularia, conduziu-nos á bancarrota e á consequente perda do credito nas bolsas extrangeiras. Foi o resultado inevitavel dos quarenta annos de orgia governativa, decorridos desde a cessação das luctas civis (…), periodo em que os constantes deficits das receitas em relação ás despezas do Estado, loucamente avolumadas, foram systematicamente cobertos por meio de ruinosos emprestimos internos e externos (…).”

O problema não é a dívida mas o que (não) se faz com ela:

“Se, porém, todas as sommas realmente arrecadadas em taes emprestimos, tivessem sido aproveitadas no fomento da riqueza geral, isto é, se fossem reproductivas, como é uso dizer-se, o paiz teria contrahido uma divida exorbitante e desproporcionada, mas ficaria dotado de todos os recursos, tanto materiais como intellectuaes, cuja posse torna uma nação prospera, illustrada e forte.”

Um pouco mais à frente, sobre o nível excessivo de receitas fiscais:

“(…) Ao lado d’isto, e com um orçamento cujo montante total das despezas não é de menos de 70:000 contos e o das receitas não excedentes a 65:000 contos, a capacidade tributaria da nação deve com justa razão considerar-se esgotada, por se terem ultrapassado, no lançamento da maior parte dos impostos directos e indirectos, os razoaveis limites maximos que os recursos economicos do contribuinte poderiam comportar.”

E, claro está, os juros:

“(…) Muitos dos rendimentos publicos – taes como as receitas aduaneiras, as dos tabacos, phosphoros, caminhos de ferro do Estado etc. -, estão hypothecadas, ou melhor, consignadas á garantia da divida externa e de varios outros emprestimos; porque, depois da bancarrôta de 1892, a finança extrangeira não empresta um vintem ao governo portuguez, sem ter na mão um penhor seguro do reembolso futuro. Receitas verdadeiramente livres ou não consignadas ao extrangeiro, quasi não existem, visto que, no caso de insufficiencia dos rendimentos aduaneiros para o serviço da divida externa, a lei da conversao d’esta divida (….) expressamente consignou «as demais receitas e rendimentos do Thesouro Portuguez.»”

“(…) Examinando qualquer mappa da despeza orçamental dos ultimos annos economicos, vê-se desde logo que só o serviço da divida publica, sob as rubricas de Juros e amortisações a cargo do Thesouro, Encargos diversos e Divida Publica, absorve cerca de 30:000 contos, ou seja metade da receita total.”

A dívida, diz o texto um pouco antes, “não ascende a menos de 820:000 contos” e levava metade dos tais 65:000 contos de receita. Mas apesar do peso da dívida, João de Freitas é contra a renegociação. Não só por causa do papão dos mercados – com a agravante de poder suscitar represálias vindas dos impérios já em rota de colisão -, mas também porque uma fatia grande da dívida estava em mãos portuguesas:

“(…) esta verba da despeza [dívida e juros] não pode nem deve soffrer a minima reducção, sob pena de reduzir á miseria os portadores dos titulos e de levantar, por parte dos credores externos e seus respectivos governos uma verdadeira tormenta, de que resultaria fatalmente um desaire e a perda da nossa propria autonomia.

“Portanto, em materia de reducções de despezas, além da eliminação da verba dos Encargos Geraes designada sob a rubrica Dotação da familia real, na importancia de cerca de 700 contos, como a consequencia da abolição da realeza, so restam como possiveis, profundos e implacaveis córtes nas despezas proprias dos ministerios.”

É no olhar sobre a austeridade defendido no texto que desaparecem os pontos de contacto com a crise e visão actual sobre este tipo de políticas – ficando até a dúvida sobre qual das posições é digna de viver no século passado. É que João de Freitas, mesmo defendendo “implacaveis córtes”, diz que estes não podem ser cegos nem indiscriminados:

“Deve todavia notar-se que, entre estas [despesas] algumas ha que, ao contrario de reduzir, o governo republicano tem o estricto dever de augmentar, para cumprir a sua missão educadora: taes são, entre outras, a da instrucção primaria, com a qual, nos orçamentos de 1904-905 e 1905-906, o Estado apenas dispendeu a verba verdadeiramente irrisoria de 280 contos, e em que não seria excessivo gastar sete ou oito vezes mais.

(…) É que, para aperfeiçoar e moralisar todos os ramos da administração publica, são condições necessarias, não só reduzir o numero dos empregados publicos ao estrictamente preciso para a boa execução dos serviços, mas sobretudo conservar sómente os mais aptos e remunerá-los bem.

Será sempre preferível ter apenas os funccionarios indispensaveis, mas capazes e bem retribuidos, a sustentar uma legião parasitaria de funccionarios ineptos, ociosos e mesquinhamente pagos.”

Uma visão bem diferente face à que continuamos condenados hoje em dia.

Para terminar, um pequeno excerto que mostra como certas instituições universitárias do início do século XXI não são mais que os “lyceus de provincia” do início do século XX:

(…) varios lyceus de provincia, que, com pequena frequencia escolar, sem material de ensino e com professores incapazes, apenas servem para anichar afilhados, passar diplomas a alumnos escandalosamente ignorantes e satisfazer a vaidade do caciquismo local.

Fonte: Alma Nacional

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