BCE vai injectar 28 mil milhões na economia. O que ganhamos com isso?

Preços podem voltar a subir antes de haver recuperação do poder de compra. Mas taxas de juro ganham incentivo para continuar em mínimos e exportações têm novo impulso

O Banco Central Europeu (BCE) quebrou ontem o imobilismo da região da moeda única e oficializou um programa de compra de dívida pública, anos depois de a Reserva Federal dos Estados Unidos (Dezembro de 2008) e do Banco de Inglaterra (Março de 2009) terem avançado por esse caminho. De forma sintética, o BCE anunciou que vai aplicar 60 mil milhões de euros por mês (1,48 mil milhões dos quais para Portugal) entre Março de 2015 e Setembro de 2016. Ou seja, falamos de 1,14 biliões de euros, dos quais 28 mil milhões para Portugal. E isto é quanto? Bem, qualquer coisa como 6,5 vezes o produto interno bruto português. Se preferir, pense no valor da Apple, da Microsoft e da Google juntas – 565 mil milhões de euros, 332 mil milhões e 311 mil milhões, respectivamente. Pronto, é nessa dimensão que estamos – parece muito, mas à escala da dívida da zona euro não é assim tanto (ver ao lado).

O tipo de programa anunciado ontem tem como nome técnico Quantitative Easing (QE), que, segundo a definição do site do Banco de Inglaterra, “é uma política monetária não convencional em que um banco central cria novo dinheiro electronicamente para comprar activos” . A teoria económica do Quantitative Easing passa pelos seguintes passos:

1. A quebra na procura – inflação baixa – é sinal de que não há dinheiro suficiente na economia real. Assim, o BCE vai comprar títulos de dívida pública com novo dinheiro para atacar essa insuficiência. E como consegue isso?

2. As compras do BCE vão ter como alvo títulos que já estão nas mãos de privados – bancos, seguradoras, fundos de pensões e até empresas não financeiras. Ao fazê-lo, os preços dos títulos sobem – mais procura -, reduzindo os lucros potenciais dos mesmos (yields), que assim ficam menos atractivos.

3. Com menos lucro potencial nestes títulos, os detentores dos mesmos perdem algum do incentivo para manter estes investimentos, redireccionando o seu capital para outro tipo de activos – acções, obrigações, mais poupança ou aumentos de capital de bancos por exemplo – que, por seu turno, ganham por ser mais procurados: ou porque valorizam (acções) ou porque ficam menos caros (obrigações privadas).

4. Ao haver esta libertação de recursos aplicados em dívida pública, em especial nos bancos, estes recuperam capacidade de financiamento à economia, o que na teoria resultará em créditos à economia real – empresas e famílias – a juros mais baixos. Além disso, há ainda o potencial crescimento das poupanças, que também reforçarão os capitais que a banca pode emprestar.

5. No fim de todos estes passos, que, dada a dimensão do programa posto em prática pelo BCE não serão dados de forma lenta, a teoria dita que a procura recupere, alimentando a inflação até aos 2% que o BCE tem como objectivo: se os juros estão mais baixos e há mais dinheiro disponível para investir, haverá também maior disponibilidade para a criação de emprego, melhorias salariais e até redução nos custos de endividamento dos estados, o que – em teoria, convém não esquecer – até pode resultar em reduções de impostos.

6. Há ainda dois outros efeitos de peso a considerar: o incentivo às exportações que o QE dá, já que não deixa de ser uma emissão de moeda que desvaloriza o euro, o que desde logo potencia as exportações dos países da moeda única para extra-europeus. Por fim, também os encargos com juros dos estados deverão cair.

Então e hoje, já estou rico? Só se tiver acertado no Euromilhões, caso contrário, e apesar do mediatismo da decisão do BCE, a verdade é que está na mesma. O impacto no dia-a-dia a curto prazo será reduzido: o QE não traz consigo redução de impostos – até pode potenciar o oposto – nem aumentos salariais ou criação de (bom) emprego de imediato, sendo até questionável que a médio e longo prazo tenha tanto impacto como dita a teoria: os bancos poderão voltar a fazer como já fizeram antes e em vez de reforçar o crédito à economia usar os recursos libertados para reforçar os seus próprios capitais, “prendendo” o capital que devia estar na economia real.

O impacto mais directo no dia-a-dia passará assim pelas taxas de juro, ganho que no fundo significa a continuação destas nos mínimos históricos actuais.

Por fim, não é de riscar a hipótese de o programa resultar num agravamento das condições de vida: se o tecido empresarial e o governo não aproveitarem para revitalizar o consumo através do aumento do poder de compra – ou seja, se decidirem reter para si os ganhos decorrentes do QE -, as famílias poderão continuar num ciclo de perda de poder de compra ao mesmo tempo que os preços voltam a subir. Um outro risco passa pelo aumento das já grandes desigualdades da zona euro: é que, se Portugal vai ter direito a vender 1,48 mil milhões por mês em dívida ao BCE a juros baixos, a Alemanha vai ter direito a vender 15,34 mil milhões. Isto quando a dívida portuguesa está nos 131,4% do PIB e a alemã em 74,8%.

in: Jornal i, 23 Janeiro 2015