A culpa é dos portugueses
O processo é simples. Com a maioria dos discursos orientados para frases como “os portugueses têm de…”; “os portugueses vão ter de…”; ou mesmo para aquela forma hábil de tornar a culpa individual na culpa de todos, como o “temos de…” ou o “fizemos isto mal …”, a mensagem passada é de que nós, portugueses, somos os culpados da crise. Apesar de errada, a sua repetição à exaustão leva a que a responsabilidade se entranhe nas pessoas, que inconscientemente aceitam a culpa.
Ontem, o discurso de Cavaco foi o exemplo perfeito e a ironia é que, ao culpar os portugueses, o PR desresponsabiliza-se de tudo, apesar de não largar o poder desde 1985. Vejamos as suas frases: “Os Portugueses devem abandonar hábitos instalados de despesa supérflua”; Nós? Hábitos de despesa supérflua? Claro. “Perdemos muitos anos na letargia do consumo fácil”; A sério? Terá sido porque alguém não quis mexer no arrendamento e obrigou os portugueses a endividarem-se por não terem alternativa? Ou terá sido porque alguns bancos andaram livremente a impingir créditos para alimentar o consumo nos anos em que Cavaco foi PM? Nada disso. A culpa é dos portugueses.
E continuou: “Os portugueses têm de redescobrir o valor republicano da austeridade digna, para que cultivem estilos de vida baseados na poupança e na contenção de gastos desmesurados.” Pronto, está resolvida a crise. Basta que as 3,3 milhões de famílias – em 4,7 milhões – em Portugal que declaram menos de 1200 euros brutos mensais acabem com gastos desmesurados em comida e passem a poupar. Simples. Cavaco até recorreu à história: “Já dizia Oliveira Martins que, quando aparecem as crises, ‘vê-se mais ao vivo como as coisas são na realidade’.” Não poderia estar mais de acordo, basta ver a forma como cada vez mais gente olha para Cavaco… o homem que este ano proibiu o PSD de pedir uma auditoria às contas públicas. Porquê? Talvez por causa“dos portugueses”, essa espécie indigna de políticos tão bons.
in: Jornal i, 6 Outubro 2011
os portugueses têm as costas largas…