Ao Congresso de Jornalistas: uma revolução para os OCS – Financiar o mercado e não os jornais

Artigo de opinião, Expresso, 16 janeiro 2024

Ser viável e ao mesmo tempo independente é um dos maiores desafios que se colocam ao jornalismo. E, dado o atual estado do setor em Portugal, é seguro dizer que os OCS não têm conseguido resolver este desafio. O diagnóstico à situação financeira é por demais conhecido e as consequências da frágil situação financeira do setor são indisfarçáveis e cada vez mais pesadas para a sociedade: Jornalismo menos abrangente e mais dependente. Ou seja, pior jornalismo.

E se temos pior jornalismo, temos, sem dúvida, uma sociedade mais enfraquecida. Porque para serem melhores, as redações precisam de ser economicamente fortes. Fortes o suficiente para resistir a pressões de anunciantes e de «parceiros», a pressões políticas, e para investigarem, noticiarem e explicarem. E fortes o suficiente para dar primazia ao ‘valor notícia’ e não ao ‘valor click’.

Só com redações robustas, teremos sociedades mais bem informadas.

Contudo, a realidade do nosso país mostra-nos que os OCS não conseguem viver unicamente do mercado. E por «viver» digo não só existir, como cumprir a sua principal função – escrutinar de forma livre todos os poderes e forças da sociedade. Mas, ao mesmo tempo que os OCS não conseguem viver do mercado, também não devem depender financeiramente de acionistas, de dois ou três anunciantes, ou de um Governo, já que tal é um impedimento, grande ou pequeno, ao cumprimento da sua função.

Neste ponto, parece que os OCS enfrentam um problema insanável: sem receitas estáveis ou em linha com as exigências que lhes são confiadas numa Democracia, a missão que se exige aos OCS é impossível de cumprir. Sem viver do mercado e ficando dependente de acionistas, de um leque reduzido de anunciantes ou de um Governo, os OCS não serão totalmente livres para cumprir o que se lhes exige.

Isto acontece porque apesar da missão dos OCS ser um serviço público, não tem qualquer apoio nesse sentido. E é precisamente por se tratar de um serviço público, que devia ser financiado pelos contribuintes. Mas aqui esbarramos com outro obstáculo: qualquer caminho que preveja a distribuição por um Governo de dinheiro público aos OCS é pernicioso – os OCS não podem depender dos humores de quem lidera a República.

Mas tal não significa que o apoio não possa ser público.

«Basta» encontrar uma forma em que o apoio público não fique dependente de quem tem a cargo a coisa pública. Não é impossível.

E se pensássemos num apoio público cuja distribuição dependa do mercado?

De facto, para que o Estado cumpra o papel de garante da “liberdade e [d]a independência dos OCS[1], mas também o dever Constitucional de os apoiar[2], sem o risco de o próprio Estado colocar em causa essa liberdade e independência, é preciso que exista um intermediário entre quem governa e a atribuição de apoios, para que não dependa de um Executivo que OCS recebe e quanto.

E como assegurar que este intermediário é independente? Já sabemos o suficiente para saber que «não vai lá» com «comissões independentes» nem com reguladores. Então como é que «vai lá»? Criando um intermediário de tal forma difuso que seja impossível colocar em causa o seu papel de «distribuidor» do financiamento para a prestação do serviço público. Um intermediário de tal forma alargado que seja totalmente impossível de manipular.

Esse intermediário podemos ser todos nós.

Ora, e considerando que só uma sociedade bem informada é forte e resistente a pressões negativas, cabe ao Estado (nós) assegurar que todos temos acesso a informação de qualidade e que esta informação é apoiada para ser forte e independente.

Assim, e para que os OCS cumpram o seu serviço público, precisamos de investir neles, distribuindo apoios de forma independente.  

Assim, teorizemos:   

  1. Imaginemos que o Estado (nós) passa a assegurar a cada residente adulto em Portugal o direito a ter duas (ou três) assinaturas de um OCS à escolha. Um qualquer residente em Portugal teria direito a assinar sem custos (diretos) dois OCS[3] à sua escolha, assinaturas essas pagas com dinheiro dos contribuintes.
  1. O que aconteceria? Seriam os leitores a decidir a distribuição do dinheiro pelos OCS e não o governo, além de que a audiência dos OCS disparava.
  • Desta forma, teríamos c. nove milhões de pessoas com acesso a duas assinaturas de OCS (físicas e/ou digitais[4]) à sua escolha e que, através dessa escolha, estabeleciam a distribuição dos apoios pelos OCS.
  • Teríamos nestas nove milhões de pessoas o tal «intermediário difuso e alargado» que nenhum governo conseguiria manipular para favorecer financeiramente um ou outro OCS;
  • Além da injeção de dinheiro que isto representaria, também criaria um imenso potencial de receitas publicitárias – porque os OCS iriam chegar a mais algumas dezenas ou centenas de milhares de pessoas.
  • Com os OCS acessíveis a estas nove milhões de pessoas, teríamos cada vez mais consumidores de informação e mais receitas para os OCS, iniciando-se um ciclo de reforço positivo (Mais receitas = melhor jornalismo = mais leitores = mais publicidade = mais receita = melhor jornalismo, etc.) que inverteria de vez o atual ciclo de reforço negativo (Perda de leitores = perda de publicidade = cortes = pior jornalismo = perda de leitores = perda de publicidade, etc.).
  • Além disso, e não de somenos: este não seria só um ‘avanço’ importante para os OCS, como significaria promover a igualdade no acesso a informação (todos, de ricos a pobres, teriam acesso aos OCS).

Detalhando:

No fundo, o Estado (nós) investia a verba para comprar as assinaturas[5] e mesmo que centenas de milhares não as quisessem, estaríamos a falar de uma explosão na procura por OCS.

Desta forma, e como caberia a cada um dos residentes do país decidir que jornais gostaria de assinar, a distribuição dos fundos ficaria só e apenas dependente do mercado. Falamos de milhões de pessoas a servir de intermediário entre as verbas públicas e a sua distribuição.

Neste cenário, é de sublinhar que nenhum OCS seria obrigado a aderir[6], até porque qualquer OCS que aderisse a este apoio teria de aceitar o valor por assinatura definido (igual para todos e não negociável) e cumprir igualmente um conjunto de normas[7]. Mas adiante.

Como mero exercício, tomemos estas premissas:

1) Os c. 192M€ que a RTP recebe anualmente;

2) Duas assinaturas para cada um de nove milhões de residentes[8].

E se valor similar aos 192M€ fossem investidos em duas assinaturas de OCS para cada um dos nove milhões de residentes? Falamos de um encaixe por assinatura de c. 11€ – para um investimento total público de 198M€.

Entre vários possíveis, teorizemos três casos:

Do «bolo» de 19M assinaturas, três OCS distintos conseguiam 1%, 5% e 10% de quota:

  1. O primeiro teria 180 mil assinantes e direito a c. 1,9M€ do ‘bolo’;
  2. O segundo teria 900 mil e direito a c. 9,6M€;
  3. O terceiro 1,8 milhões e direito a c. 19,8M€;

Desta forma, seria o mercado (nós) a decidir a distribuição das verbas dos contribuintes (nós) e não um Governo, que apenas repassava o dinheiro aos OCS consoante a procura – eventuais atrasos e/ou adulterações de números seriam demasiado visíveis[9].

Obviamente que jornais mais populares acabariam por ficar com a fatia de leão, mas quanto a isso seria «o mercado a funcionar». Contudo, e para impedir que um OCS distorcesse o mercado ao assegurar 30% ou 50% da verba, poderia ser definido um tecto máximo (10%?) para a distribuição de valores – sendo o remanescente redistribuído pelos OCS na mesma proporção ou investido em formação, novos projetos, etc.

No cenário descrito, este OCS poder-se-ia queixar – já que teria 30% das assinaturas e recebia apenas 10% -, alegando perda de verbas. Contudo, este OCS seria também beneficiado pela redistribuição do excesso e, por outro lado, o peso de ter 30% do mercado far-se-ia sentir nas receitas publicitárias[10].

Mensalmente (ou anualmente) nós, residentes com direito às assinaturas, teríamos toda a liberdade de trocar a assinatura de um OCS por outro, o que daria elasticidade ao mercado, ‘castigando’ ou ‘premiando’ o bom e o mau jornalismo, ou simplesmente porque apetecia variar. Ninguém teria de justificar a troca.

Haveria outros pontos a abordar neste meu «princípio de ideia», ou proposta de caminho, mas dada a limitação de caracteres, ficam aqui os traços essenciais de uma Comunicação que gostaria de ter apresentado ao Congresso de Jornalistas, mas cuja apresentação foi liminarmente recusada. «É só para jornalistas com carteira.»

É urgente financiarmos o serviço público prestado pelos OCS. Um serviço público que tem sido votado ao abandono e, assim, condenado a viver pela lógica empresarial, o que tem representado o lento suicídio da missão essencial do jornalismo.

Não por acaso, a deterioração da Democracia tem andado ao mesmo ritmo da deterioração dos OCS. E também aqui precisamos de sair do ciclo de reforço negativo para um ciclo de reforço positivo. Os OCS estão ao serviço da Democracia, mas a Democracia também tem de estar ao serviço dos OCS. Sejamos disruptivos e revolucionários. Já passou a hora das «meias-medidas». Defenda-se a Democracia, defendendo os OCS.

Filipe Paiva Cardoso

Ex-jornalista


[1] Artigo 38.º da CRP, al. 4): «O Estado assegura a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico, impondo o princípio da especialidade das empresas titulares de órgãos de informação geral, tratando-as e apoiando-as de forma não discriminatória e impedindo a sua concentração, designadamente através de participações múltiplas ou cruzadas.»

[2] Idem, ibidem

[3] Ter o Público e o Expresso, por exe. Ou A Bola e a Visão. Ou um nacional e um jornal regional. Cada um seria livre para optar.

[4] No caso de edições físicas, podiam ir levantá-las a quiosques (mediante QR code, cartão assinante ou similar) ou receber em casa.

[5] Caso se decidisse que cada residente +15 anos teria direito a 2 assinaturas, seriam 18 milhões de assinaturas para c. 9 milhões pessoas.

[6] Na lista da APCT, há publicações que vão desde a revista do “Continente”, ao boletim da Ordem dos Advogados, passando por todos os OCS ditos de referência. Óbvio que publicações como as duas primeiras ficariam de fora. Contudo, há publicações que podem cruzar três espaços – ‘informação’, ‘entretenimento’, ‘interesse de classe’ – que provavelmente se procurariam reinventar para fazer parte deste apoio. Este seria um dos pontos mais difíceis de fechar seguramente: onde se traça a linha? Mas algo é certo: jornais partidários ficariam de fora.

[7] Como por exe. valorizar a carreira de jornalista, aceitando um estatuto, tabelas remuneratórias comuns, sem restringir a meritocracia, mas impondo condições e evoluções mínimas – nível salarial mínimo para estagiários; nível salarial mínimo para júnior, sénior, editores; etc.;

[8] Referência: O total de residentes em Portugal com mais de 15 anos. Meramente exemplificativo.

[9] Os jornais têm acesso ao total de assinantes logo poderiam facilmente controlar se estão ou não a receber o valor correcto, caso algum Governo tentasse esse caminho.

[10] De qualquer forma, a ideia não é ter OCS «subsídio-dependentes», antes assegurar-lhes um «mínimo» para o cumprimento de serviço público.